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domingo, 26 de janeiro de 2020

O DEUS NA URNA - The God in the Bowl - Robert E Howard

O DEUS NA URNA

The God in the Bowl

Arus, o guarda, agarrou sua besta com mãos trêmulas, e sentiu gotas de suor frio brotarem na pele, ao
olhar para o feio cadáver estendido no chão polido. Não é nada agradável se deparar com a Morte num
lugar solitário no meio da noite.
Arus se postava num corredor vasto, iluminado por velas enormes, colocadas nos nichos ao longo das
paredes. Entre os nichos, as paredes eram cobertas por tapeçarias de veludo negro; e, entre essas
tapeçarias, pendiam escudos e armas cruzadas de feitio fantástico. Aqui e ali, havia figuras de deuses
curiosos — imagens de pedra ou madeira rara, esculpidas em bronze, ferro ou prata —, espelhando-se no
chão negro de mogno.
Arus estremeceu. Ele jamais conseguira se acostumar ao lugar, embora estivesse trabalhando como
guarda já havia alguns meses. O grande museu e casa de antiguidades, que os homens chamavam de
Templo de Kallian Publico, era um edifício antigo cheio raridades vindas de todas as partes do mundo —
e agora, na solidão da meia— noite, Arus estava no enorme salão silencioso, olhando para o cadáver do
que havia sido o rico e poderoso proprietário do Templo.
Até o cérebro obtuso do guarda entendia que o homem estava com uma aparência muito estranha,
diferente daquela de quando cavalgava ao longo do Caminho Palian em sua carruagem dourada, arrogante
e dominador, com seus olhos escuros brilhando com vitalidade magnética. Os homens que odiavam
Kallian Publico mal o reconheceriam agora, jogado como um monte de gordura desintegrada, com seu
rico robe meio arrancado e sua túnica púrpura torcida. O seu rosto estava escuro, os olhos arregalados e
a língua esticada para fora da boca aberta. As mãos gorduchas estavam abertas como se num gesto de
curiosa futilidade. Pedras preciosas reluziam em seus dedos grossos.
— Por que eles não levaram os anéis? — murmurou o guarda inquieto.
Então ele parou e olhou, os cabelos curtos começando a se eriçar na parte posterior do pescoço.
Afastando as cortinas de seda escura que escondiam uma das muitas portas que se abriam para a sala,
surgiu uma figura.
Arus viu um jovem alto, forte, vestido apenas com uma tanga e sandálias amarradas nos tornozelos.
Sua pele estava tostada, como que pelo sol do deserto, e Arus olhou nervosamente para seus ombros
largos, peito maciço e braços pesados. Um único olhar para as feições taciturnas e as sobrancelhas
largas, mostrava ao guarda que o homem não era um nemédio. Debaixo de uma negra cabeleira
desgrenhada ardia um par de perigosos olhos azuis. Uma espada comprida, enfiada numa bainha de couro
desgastado, pendia de seu cinto.
Arus sentiu um arrepio na pele e, tenso, dedilhou sua besta, meio indeciso entre atirar um dardo no
corpo do estranho sem avisar, e o medo do que pudesse acontecer se falhasse em matá-lo no primeiro
tiro.O estranho olhou para o corpo no chão, mais curioso do que surpreso.
— Por que você o matou? — perguntou Arus, nervoso.
— Eu não o matei. — respondeu o outro, sacudindo a cabeça desgrenhada, e falando em Nemédio com
um sotaque bárbaro — Quem é ele?
— Kallian Publico. — respondeu Arus, recuando.
— O proprietário desta casa? — perguntou o estranho, com um lampejo de interesse nos taciturnos
olhos azuis.
—Sim.
Arus já havia recuado até a parede. Então agarrou uma grossa corda de veludo que estava pendurada
ali e sacudiu—a violentamente.
Ouviu-se lá fora, na rua, o som estridente dos sinos que estavam pendurados diante de todas as lojas e
estabelecimentos para convocar a guarda.
—Por que você fez isso? — perguntou o estranho surpreendido — Assim vai chamar o guarda!
— Eu é que sou o guarda, velhaco! — respondeu Arus, reunindo coragem — Fique onde está. Não se
mova, senão atiro!
Seu dedo tocou o gatilho de sua besta; a maldosa cabeça quadrada da seta apontou diretamente para o
peito largo do outro. O estrangeiro franziu a testa e olhou de esguelha para Arus. Não demonstrava medo,
mas parecia hesitar entre obedecer à ordem e arriscar um ataque repentino. Arus lambeu os lábios e seu
sangue gelou nas veias, ao perceber claramente que havia um conflito entre precaução e intenção
assassina nos olhos nublados do estrangeiro.
Então ele ouviu o estrondo da porta se abrindo e um alarido de vozes, e deu um profundo suspiro de
alívio. O estrangeiro se retesou, com o olhar preocupado de um animal encurralado, quando meia dúzia
de homens entrou no salão. Todos eles, com exceção de um, usavam a túnica escarlate da guarda numália.
Estavam armados com gládios e alabardas — armas de lâminas compridas, meio lanças, meio machados.
— Que trabalho de demônio é este? — exclamou o homem que estava à frente, cujos frios olhos
cinzentos e feições bem delineadas e magras, assim como suas vestes de civil, destacavam-no no meio de
seus rudes companheiros.
— Por Mitra, Demétrio! — exclamou Arus aliviado — Sem dúvida, a sorte está do meu lado esta
noite. Não esperava que a guarda respondesse ao meu chamado com tanta rapidez, nem que você
estivesse entre eles!
— Eu estava fazendo a ronda com Dionus. — respondeu Demétrio — Estávamos passando pelo
Templo quando o sino de alarme tocou.
Mas quem é este aqui? Por Mitra! É o próprio senhor do Templo!
— Ninguém mais — respondeu Arus —, e foi assassinado de maneira terrível. É meu dever caminhar
pelo edifício a noite toda, porque, como você sabe, há uma imensa fortuna armazenada aqui. Kallian
Publico tinha patronos ricos... estudiosos, príncipes e ricos colecionadores de raridades. Bem, há apenas
alguns minutos, experimentei a porta que se abre para o pórtico e verifiquei que estava fechada apenas
com travas: o cadeado estava aberto. A porta tem uma tranca que pode ser aberta dos dois lados, e tem
também um enorme cadeado que só pode ser aberto do lado de fora. Somente Kallian Publico tinha a
chave desse cadeado, que é a chave pendurada no seu cinto.
"Eu sabia que algo estava errado, pois Kallian sempre trancava a porta com o cadeado grande, quando
fechava o Templo, e eu não o vi desde que partiu, no final do dia, para a aldeia nos subúrbios orientais
da cidade. Eu tenho a chave que abre a trava; entrei e encontrei o corpo estendido, assim como está
agora. Não toquei nele".
— Então — perguntou Demétrio, examinando com seus olhos agudos o estrangeiro sombrio —, quem
é este aqui?
— O assassino, sem dúvida! — gritou Arus — Ele surgiu daquela porta ali. É algum tipo de bárbaro
do Norte... talvez um hiperbóreo ou um bossoniano.
— Quem é você? — perguntou Demétrio.
— Eu sou Conan, um cimério. — respondeu o bárbaro.
— Foi você que matou este homem? O cimério sacudiu a cabeça.
— Responda-me! — ordenou o inquisidor.
Um laivo de fúria apareceu nos taciturnos olhos azuis.
— Não sou cão!
— Oh, um sujeito insolente! — disse, com um sorriso de escárnio, o companheiro de Demétrio, um
homem grande, que usava a insígnia do chefe da guarda — Um ladrão independente! Um desses cidadãos
com direitos, hein? Já, já sacudo a impertinência dele. Você aí! Fale! Por que você matou...
— Espere um momento, Dionus. — ordenou Demétrio — Camarada, eu sou o chefe do Conselho de
Investigação da cidade de Numália. É melhor você me dizer por que está aqui e, se não for o assassino,
então prove.
O cimério hesitou. Ele não demonstrava medo, mas estava um pouco confuso, como um bárbaro fica
quando confrontado com as complexidades dos sistemas civilizados, cujo funcionamento é muito
misterioso e incompreensível para ele.
— Enquanto ele decide — precipitou-se Demétrio, voltando-se para Arus —, diga-me: você viu
Kallian Publico sair do Templo hoje à noite?
— Não; mas ele costuma estar fora quando chego para o meu turno de sentinela. A grande porta estava
travada e trancada com o cadeado.
— Ele poderia ter entrado no edifício sem que você o tivesse visto?
— Ora, é possível, mas pouco provável. O Templo é grande, mas eu o percorro em poucos minutos.
Se ele tivesse voltado de sua casa de campo, certamente teria vindo em sua carruagem, pois é longe... e
quem já viu Kallian Publico viajar de outra maneira? Mesmo se eu estivesse do outro lado do Templo,
teria ouvido as rodas da carruagem rangendo sobre os pedregulhos. E não ouvi nada, nem vi qualquer
carruagem, exceto as que sempre passam ao longo das ruas logo ao anoitecer.
— E a porta estava trancada no início da noite?
— Juro que sim. Eu testo todas as portas várias vezes durante a noite. A porta estava trancada do lado
de fora até talvez uma meia hora atrás, quando foi a última vez que testei antes de descobrir que estava
destrancada.
— Você ouviu gritos ou sons de luta?
— Não senhor. Mas isto não é estranho, pois as paredes do Templo são tão grossas que não permitem
que nenhum ruído as atravesse, um efeito aumentado pelas cortinas pesadas.
— Para que todo este incômodo, de fazer perguntas e especulações? — queixou-se o rude prefeito —
O nosso homem é este aqui, sem dúvida. Vamos levá-lo à Corte da Justiça; vou arrancar uma confissão
dele, mesmo se tiver de esmagar seus ossos.
Demétrio olhou para o bárbaro.
— Você entende o que ele disse? — perguntou o inquisidor — Que é que tem a dizer?
— Que o homem que me tocar, logo em seguida estará cumprimentando seus ancestrais no Inferno. —
o cimério rangeu, entre seus dentes poderosos, com os olhos lançando chamas de fúria perigosa.
— Por que você veio até aqui, se não foi para matar este homem? — continuou Demétrio.
— Eu vim para roubar. — respondeu sombriamente o outro.
— Roubar o quê? — perguntou automaticamente o inquisidor.
— Comida. — a resposta veio após um instante de hesitação.
— É mentira! — disse Demétrio — Você sabia que não havia comida aqui. Não minta para mim.
Diga-me a verdade ou...
O cimério colocou a mão sobre o punho da espada, e o gesto estava tão carregado de ameaça quanto o
arreganhar dos lábios de um tigre, mostrando as presas.
— Poupe suas ameaças para os idiotas que têm medo de você. — grunhiu ele — Não sou nenhum
nemédio criado na cidade, para me encolher diante de seus cães amestrados. Já matei homens melhores
que você por menos que isso.
Dionus, que abrira a boca para vociferar sua fúria, fechou—a subitamente. Os guardas remexiam
indecisos suas alabardas e olhavam para Demétrio, aguardando suas ordens, desnorteados por presenciar
a derrota da toda—poderosa polícia, mas esperavam o comando para apanhar o bárbaro. Mas Demétrio
nada fez. Ele conhecia, mesmo que os outros fossem estúpidos demais para percebê-lo, as armadilhas de
aço nos músculos de homens como aquele e a rapidez cegante dos homens criados além das fronteiras da
civilização, onde a vida era uma batalha contínua pela existência; e ele não desejava liberar o frenesi
bárbaro do cimério, se isso pudesse ser evitado. Além disso, havia uma dúvida em sua mente.
— Eu não o acusei de ter matado Kallian. — retrucou ele — Mas você deve admitir que as aparências
o condenam. Como entrou no Templo?
— Eu me escondi na sombra do armazém atrás deste edifício. — respondeu Conan a contragosto —
Quando este cão — disse, apontando o polegar para Arus — passou por mim e dobrou a esquina, eu corri
e escalei o muro...
— Mentira! — interrompeu Arus — Ninguém consegue subir por aquele muro liso!
— Você nunca viu um cimério escalar um rochedo perpendicular? — perguntou Demétrio — Eu estou
conduzindo esta investigação. Continue, Conan.
— O canto é decorado com entalhes. — disse o cimério. — Foi fácil escalar. Alcancei o telhado antes
que este cão desse a volta no edifício novamente. Encontrei um alçapão, fechado com uma trava de ferro
trancada por dentro. Fui forçado a dobrar a trava em dois com minha espada...
Arus, lembrando-se da grossura da trava, engoliu em seco sem perceber e se afastou do bárbaro, que
franziu a testa distraidamente para ele e continuou:
— Temi que o barulho pudesse acordar alguém, mas era um risco que eu tinha de correr. Passei pelo
alçapão e entrei num aposento superior. Não parei ali; fui direto até a escada...
— Como é que você sabia onde ficava a escada? Apenas aos empregados de Kallian e seus ricos
patronos era permitido o acesso a esses aposentos superiores.
Uma funda obstinação escurecia os olhos de Conan, e ele permaneceu em silêncio.
— O que você fez depois de chegar à escada? — exigiu Demétrio.
— Desci por ela. — balbuciou o cimério — A escada levava ao aposento atrás daquela porta com
cortinas. Quando desci as escadas, ouvi uma outra porta se abrindo. Quando olhei através da cortina, vi
este cão em pé ao lado do homem morto.
— Por que você saiu de seu esconderijo?
— Estava escuro quando vi o guarda do lado de fora do Templo. Quando eu o vi aqui, achei que fosse
um ladrão também. Só quando ele puxou a corda dos sinos e ergueu seu arco, foi que percebi que era o
guarda.
— Mas mesmo assim — insistiu o Inquisidor —, por que você se revelou?
— Porque pensei que ele fosse outro ladrão, que veio roubar aquilo que... — o cimério se conteve,
como se tivesse falado demais.
— Aquilo que você mesmo veio roubar! — concluiu Demétrio — Você me contou mais do que
pretendia! Veio aqui com um propósito definido. Não se deteve, segundo sua própria confissão, nos
aposentos superiores onde estão guardadas as maiores riquezas. Você dominava a planta do prédio, e foi
enviado aqui por alguém que conhece bem o Templo, para roubar alguma coisa especial!
— E matar Kallian Publico! — exclamou Dionus — Por Mitra, é isso! Peguem-no, homens! Teremos
uma confissão antes do amanhecer!
Com uma praga pagã, Conan saltou para trás, sacando a espada com tanta fúria que a lâmina afiada
zuniu.
— Para trás, se prezam suas malditas vidas! — grunhiu ele — Só porque ousam torturar lojistas, e
desnudar as prostitutas e bater nelas para fazê-las falar, não pensem que podem botar suas patas gordas
num homem das colinas! Levarei alguns de vocês comigo até o inferno! É só tocar no seu arco, guarda,
que eu arrebento suas entranhas com o meu calcanhar, antes que o turno desta noite acabe!
— Espere! — disse Demétrio — Afaste seus cães, Dionus. Ainda não estou convencido de que ele
seja o assassino. Seu idiota — ele acrescentou, num sussurro —; espere até que possamos convocar mais
homens, ou o enganarmos, fazendo com que ele abaixe sua espada. — Demétrio não queria anteceder a
vantagem de sua mente civilizada, permitindo que a questão mudasse para uma base física, onde a
selvagem ferocidade bestial do bárbaro poderia virar a mesa contra ele.
— Muito bem. — grunhiu Dionus, de má vontade — Afastem-se, homens, mas continuem de olho nele.
— Dê—me sua espada. — disse Demétrio.
— Pegue—a se puder. — rosnou Conan.
Demétrio encolheu os ombros.
— Tudo bem. Mas não tente fugir. Há quatro homens com bestas, guardando a casa do lado de fora.
Nós sempre lançamos um cordão ao redor de uma casa, antes de a adentrarmos.
O bárbaro abaixou sua lâmina, embora relaxasse apenas de leve seu tenso estado de alerta. Demétrio
voltou-se novamente para o cadáver.
— Estrangulado. — murmurou ele — Porque alguém haveria de estrangulá-lo, se um golpe de espada
é muito mais rápido e seguro? Esses cimérios são uma raça sangrenta, nascida com uma espada na mão;
nunca ouvi falar de um cimério matar um homem desta maneira.
— Talvez para afastar suspeitas. — disse Dionus.
— Possivelmente. — ele tocou o corpo com mãos experientes — Morto há possivelmente meia hora.
Se Conan diz a verdade sobre quando entrou no Templo, mal teria tempo para cometer o assassinato
antes de Arus entrar. Mas ele pode estar mentindo... pode ter entrado antes.
— Escalei a parede depois que Arus fez a sua última ronda. — grunhiu Conan.
— É o que você diz. — respondeu Demétrio, detendo-se na garganta do morto, que havia sido
esmagada até se transformar, literalmente, num monte de carne arroxeada. A cabeça pendia solta por
causa das vértebras quebradas. Demétrio sacudiu a cabeça, duvidando:
— Por que um assassino usaria um cabo aparentemente mais grosso que e braço de um homem? —
murmurou — E que aperto terrível teria esmagado o grosso pescoço dele dessa maneira?
Ele se levantou e foi até a porta mais próxima, que se abria para o corredor.
— Aqui perto da porta há uma estátua derrubada de seu pedestal — disse ele —; o chão está
arranhado, e as cortinas na soleira estão rasgadas, como se uma mão as tivesse agarrado... talvez em
busca de apoio. Kallian Publico deve ter sido atacado nessa sala. Talvez ele tenha tentado escapar do
assaltante, ou arrastado o sujeito consigo na fuga. De qualquer maneira, ele correu cambaleando no
corredor, onde o assassino deve tê-lo seguido e acabado com ele.
— E se este pagão não for o assassino, então onde está ele? — exigiu o prefeito.
— Ainda não descartei o cimério. — disse o inquisidor — Mas investigaremos aquele aposento...
Ele se deteve, virou-se e ficou escutando. Da rua, vinha o rangido de rodas de carruagem, que se
aproximou e cessou rapidamente.
— Dionus! — bramiu o inquisidor — Mande dois homens atrás dessa carruagem. Traga o condutor até
aqui.—
Pelo ruído — disse Arus, que conhecia bem todos os sons da rua —, eu diria que ela parou na
frente da casa de Promero, do lado oposto da rua onde fica a loja do mercador de seda.
— Quem é Promero? — perguntou Demétrio.
— É o escrivão—chefe de Kallian Publico.
— Mande buscá-lo junto com o condutor. — disse Demétrio — Vamos esperar que eles cheguem,
antes de examinarmos aquela sala.
Dois guardas foram enviados. Demétrio ainda estudava o corpo; Dionus, Arus e os outros policiais
observavam Conan, que estava em pé com a espada na mão, como uma ameaçadora estátua de bronze.
Então ecoaram passos de pés calçados com sandálias, e dois guardas entraram com um homem robusto,
de pele escura, usando o capacete e a túnica de um cocheiro, com um chicote na mão, e um indivíduo
pequeno, tímido, típico da classe que, saída das fileiras dos artesãos, fornece seus serviços para ricos
mercadores e comerciantes. O homenzinho retraiu-se com um grito ao ver o volume estendido no chão.
— Oh, eu sabia que o mal acabaria acontecendo! — choramingou ele.
— Você é Promero, o escrivão—chefe, suponho. E você?
— Enaro, cocheiro de Kallian Publico.
— Você não parece muito impressionado com o cadáver dele. — observou Demétrio.
Os olhos escuros de Enaro faiscaram.
— Por que haveria eu de ficar impressionado? Alguém fez o que eu sempre quis fazer, mas nunca tive
coragem.
— Então! — murmurou o inquisidor — Você é um homem livre?
Os olhos de Enaro estavam amargos quando ele afastou a túnica, descobrindo seu ombro onde havia a
marca do escravo devedor.
— Você sabia que seu senhor vinha aqui hoje à noite?
— Não. Eu trouxe a carruagem até o Templo hoje à noite para ele, como de costume. Ele entrou e eu
dirigi até a sua casa de campo. Entretanto, antes de chegarmos ao Caminho Palian, ele mandou que
voltássemos. Parecia muito agitado.
— E você o levou de volta para o Templo?
— Não. Ele ordenou que eu parasse na casa de Promero. Lá, ele me dispensou, e mandou que eu
voltasse para buscá-lo logo após a meia-noite.
— Que horas eram?
— Pouco depois do escurecer. As ruas estavam quase desertas.
— O que você fez em seguida?
— Voltei ao alojamento de escravos, onde fiquei até a hora de voltar à casa de Promero. Então parti
direto para lá, e seus homens me agarraram quando eu falava com Promero na porta de sua casa.
— Você tem alguma idéia do motivo pelo qual Kallian foi à casa de Promero?
— Ele não falava de seus negócios com os escravos. Demétrio voltou-se para Promero.
— O que você sabe sobre isso?
— Nada. — os dentes do vendedor tremiam ao falar.
— Kallian Publico foi até a sua casa, conforme diz o cocheiro?
— Sim.
— Quanto tempo ele ficou lá?
— Só alguns minutos. Depois foi embora.
— Ele foi para o Templo, depois de deixar a sua casa?
— Não sei! — disse o escrivão numa voz aguda e alterada.
— Por que ele foi até a sua casa?
— Para... para falar de negócios comigo.
— Você está mentindo. — disse Demétrio — Por que ele foi até a sua casa?
— Eu não sei! Não sei de nada! — Promero ficava cada vez mais histérico — Não tenho nada a ver
com isso...
— Obrigue-o a falar, Dionus. — falou bruscamente Demétrio, e Dionus grunhiu e acenou para um de
seus homens, que, com um sorriso selvagem, aproximou-se dos dois prisioneiros.
— Vocês sabem quem eu sou? — grunhiu ele, esticando o pescoço e fitando de forma dominante sua
presa encolhida de medo.
— Você é Posthumo. — respondeu o cocheiro, de modo taciturno — Você arrancou o olho de uma
moça na Corte da Justiça, porque ela se recusava a incriminar o amante.
— Eu sempre consigo o que quero! — vociferou o guarda, as veias inchando no seu pescoço grosso e
seu rosto ficando roxo, quando ele agarrou o pobre escrivão pelo colarinho da túnica, torcendo-o de
maneira que o homem ficou quase sufocado.
— Fale, rato! — grunhiu ele — Responda ao inquisidor!
— Oh, por Mitra, piedade! — berrou o coitado — Eu juro...
Posthumo bateu com violência em uma de suas faces, depois na outra, e prosseguiu o interrogatório
jogando-o no chão e o chutando com precisão maldosa.
— Piedade! — gemeu a vítima — Eu conto, eu conto qualquer coisa...
— Então se levante, seu bastardo! — vociferou Posthumo, inchando em arrogância — Não fique
deitado aí chorando!
Dionus lançou um rápido olhar para Conan, para ver se ele estava impressionado.
— Veja o que acontece com aqueles que desacatam a polícia. — disse ele.
Conan cuspiu, com uma zombaria de cruel desprezo ao escrivão que gemia.
— Ele é um fraco e um tolo. — grunhiu ele — Se um de vocês tocar em mim, espalho suas entranhas
pelo chão.
— Você está pronto para falar? — perguntou Demétrio, cansado. Ele achava estas cenas entediantes.
— Tudo o que sei — soluçou o escrivão, pondo-se de pé com dificuldade, ganindo como um cão que
apanhou — é que Kallian foi até a minha casa, pouco depois que eu cheguei; saí do templo junto com ele,
quando ele mandou embora sua carruagem. Ele ameaçou me demitir se eu dissesse qualquer coisa a
respeito disso. Sou um homem pobre, meus senhores, não tenho amigos nem vantagens. Sem a minha
posição junto a ele, morreria de fome.
— O que tenho eu a ver com isso? — disse Demétrio — Quanto tempo ele ficou na sua casa?
— Até talvez as onze e meia. Em seguida ele saiu, dizendo que estava indo para o Templo e iria voltar
depois de fazer o que pretendia.
— O que ele pretendia fazer lá?
Promero hesitava em revelar os segredos de seu empregador, mas ao olhar, trêmulo, para Posthumo,
que sorria maldosamente com o enorme punho cerrado, logo abriu a boca.
— Havia algo no Templo que ele queria examinar.
— Mas por que ele viria aqui sozinho, e em tamanho segredo?
— Porque a coisa não lhe pertencia. Chegou de madrugada, com uma caravana vinda do sul. Os
homens da caravana nada sabiam a respeito disso, exceto que essa coisa fora confiada a eles pelos
homens de uma caravana da Stygia, e que se destinava a Kalanthes de Hanumar, sacerdote de Íbis. O
senhor da caravana havia sido pago por aqueles homens para levá-la diretamente para Kalanthes, mas,
tratante por natureza, queria continuar direto para a Aquilônia pela estrada que não passa por Hanumar.
Então ele perguntou se podia deixá-la no Templo até que Kalanthes mandasse buscá-la.
"Kallian concordou e disse—lhe que ele mesmo mandaria um criado informar Kalanthes. Mas, depois
que os homens haviam partido e falei do mensageiro, Kallian me proibiu de mandá-lo. Ele ficou
matutando sobre o que os homens haviam deixado.
— E o que era isso?
— Uma espécie de sarcófago, igual ao que se encontra nos antigos túmulos stígios. Mas este era
redondo, como uma tigela de metal com tampa. Era feita de algo semelhante ao cobre, mas mais duro, e
tinha hieróglifos gravados iguais aos que se encontram nos antigos menires no sul da Stygia. A tampa
estava bem fixada por tiras entalhadas, semelhantes ao cobre.
— O que havia dentro dela?
— Os homens da caravana não sabiam. Aqueles que lhes tinham dado a tigela disseram que era uma
relíquia de incalculável valor, encontrada entre os túmulos bem abaixo das pirâmides e enviada para
Kalanthes "por causa do amor que o remetente dedicava ao sacerdote de Íbis". Kallian Publico
acreditava que ela continha o diadema dos reis gigantes, dos povos que habitavam aquela terra escura
antes que os antepassados dos stígios chegassem. Ele me mostrou um desenho gravado na tampa, o qual
ele jurava ter a forma do diadema, que, segundo as lendas, era usado pelos reis—monstros.
"Ele queria abrir a Tigela para ver o seu conteúdo. Enlouquecia-o a idéia do fabuloso diadema,
incrustado com estranhas pedras preciosas conhecidas apenas pela raça antiga, das quais uma única
valeria mais do que todas as pedras do mundo moderno.
"Eu o preveni para não fazê-lo. Mas, ele continuou em minha casa, como já havia dito e, pouco antes
da meia-noite, foi sozinho ao Templo, escondendo-se nas sombras até o guarda passar para o outro lado
do edifício; depois entrou, usando a chave que trazia na cintura. Fiquei nas sombras da loja de sedas,
observando-o até ele entrar, e depois voltei para casa. Se ele encontrasse o diadema na Tigela, ou
qualquer outra coisa de grande valor, pretendia escondê-lo em algum lugar no Templo e depois, sem que
ninguém percebesse, tirá-lo de lá. Na manhã seguinte, faria uma grande gritaria, diria que ladrões haviam
invadido sua casa e roubado a propriedade de Kalanthes. Ninguém saberia de sua trapaça além do
condutor da carruagem e de mim, e nenhum de nós iria traí-lo".
— Mas e o guarda? — contestou Demétrio.
— Kallian não pretendia ser visto por ele; planejava mandar crucifica-lo como cúmplice dos ladrões.
— respondeu Promero. Arus engoliu em seco e empalideceu, quando percebeu o quanto era corrupto seu
empregador.
— Onde está este sarcófago? — perguntou Demétrio. Promero apontou, o inquisidor resmungou —
Então! O mesmo aposento no qual Kallian deve ter sido atacado.
Promero empalideceu e torceu as mãos magras.
— Por que um homem da Stygia mandaria um presente para Kalanthes? Deuses antigos e múmias
esquisitas já vieram pelas estradas das caravanas antes, mas quem é que ama tanto o sacerdote de Íbis na
Stygia, onde as pessoas ainda adoram o arquidemônio Set, que serpenteia entre os túmulos na escuridão?
O deus Íbis está em constante luta com Set desde a aurora da Terra, e Kalanthes passou a vida inteira
combatendo os sacerdotes de Set. Há alguma coisa obscura e oculta nisso tudo.
— Mostre—nos este sarcófago. — ordenou Demétrio, e Promero foi à frente, hesitante. Todos o
seguiram, inclusive Conan, que nem parecia notar como os guardas o olhavam, e parecia apenas curioso.
Eles passaram pelas cortinas rasgadas e entraram no aposento, que estava mais escuro do que o corredor.
As portas dos dois lados conduziam para outros aposentos, e as paredes estavam cobertas de imagens
fantásticas, de deuses de terras estranhas e povos distantes. Promero deu um grito agudo.
— Olhem! A tigela! Está aberta... e vazia!
No centro da sala, havia um estranho cilindro negro, de mais ou menos um metro e meio de altura e
uns 90 centímetros de diâmetro na sua parte mais larga. A pesada tampa entalhada jazia no chão, e ao
lado dela um martelo e um formão. Demétrio olhou dentro da tigela, perplexo por um instante com os
obscuros hieróglifos, e voltou-se para Conan.
— É isto o que você veio roubar?
— Como é que eu conseguiria levá-la embora? É grande demais para um homem carregar.
— As faixas foram cortadas com este formão — comentou Demétrio —; e com pressa. Há marcas do
martelo que errou o alvo ao bater no metal. Podemos supor que Kallian abriu a Tigela. Alguém devia
estar se escondendo por perto... possivelmente atrás das cortinas da porta. Quando Kallian conseguiu
abrir a Tigela, o assassino lançou-se sobre ele... ou pode ter matado Kallian e aberto ele mesmo a Tigela.
— Isto é uma coisa sinistra. — arrepiou-se o escrivão — É muito antigo para ser sagrado. Quem é que
já viu um metal assim num mundo são? Parece mais duro do que o aço da Aquilônia, mas veja como está
corroído e desgastado, com manchas. Vejam os pedaços de bolor negro, nos entalhes dos hieróglifos; têm
o mesmo cheiro que a terra exala bem abaixo da superfície. E vejam... aqui, na tampa! — O escrivão
apontou com o dedo trêmulo — O que vocês diriam que é?
Demétrio curvou-se perto do desenho gravado.
— Eu diria que representa uma espécie de coroa. — grunhiu ele.
— Não! — exclamou Promero — Avisei Kallian, mas ele não quis acreditar em mim! É uma serpente
escamosa e enrolada, com a cauda na boca. É o sinal de Set, a Velha Serpente, o deus dos stígios! Esta
Tigela é muito antiga para um mundo humano; é uma relíquia do tempo em que Set caminhava pela Terra
em forma humana. Talvez a raça que surgira de sua semente guardasse os ossos de seus reis em caixas
como esta!
— E você diria que aqueles ossos ressecados se ergueram, estrangularam Kallian Publico e depois
foram embora? — zombou Demétrio.
— Não era um ser humano o que foi colocado para descansar nesta tigela. — sussurrou o escrivão,
com olhos arregalados e fixos no objeto — Que tipo de homem caberia nisto aqui?
Demétrio praguejou repulsivamente.
— Se o cimério não é o assassino — ele falou bruscamente —, o autor disto ainda está em algum
lugar neste edifício. Dionus e Arus, fiquem aqui comigo, e vocês três, prisioneiros, fiquem aqui também.
O resto de vocês faça uma busca na casa! Se o assassino fugiu antes que Arus encontrasse o corpo,
somente poderia fugir pelo mesmo caminho pelo qual Conan entrou, e neste caso o bárbaro o teria visto,
se ele estiver dizendo a verdade.
— Não vi ninguém além deste cão. — grunhiu Conan, apontando para Arus.
— É claro que não, porque você é o assassino. — disse Dionus — Estamos perdendo tempo, mas
vamos fazer uma busca por formalidade. E, se não encontrarmos ninguém, prometo que você será
queimado! Lembre-se da lei, meu selvagem de cabelos negros: por matar um artesão, você vai para as
minas; por um comerciante, você é enforcado; um nobre, você é queimado!
Conan arreganhou os lábios, mostrando os dentes, como resposta. Os homens começaram sua busca.
Ouviam-se seus passos para cima e para baixo pelos aposentos, movendo objetos, abrindo portas e
gritando uns para os outros.
— Conan — disse Demétrio —, você sabe o que significa se eles não acharem ninguém?
— Eu não matei esse homem. — rosnou o cimério — Mas, se ele tentasse me impedir, eu teria partido
seu crânio; mas não o vi até que dei com o seu cadáver.
— Sei que, no mínimo, alguém o mandou aqui para roubar. — disse Demétrio — Por causa do seu
silêncio, você se incrimina neste assassinato também. O simples fato de você estar aqui é suficiente para
mandá-lo para as minas por dez anos, admita você a culpa ou não. Mas, se contar a história toda, poderá
se salvar do enforcamento.
— Bem — respondeu o bárbaro a contragosto —, vim aqui roubar a taça de diamantes zamorianos.
Um homem me deu um mapa do Templo e me disse onde procurá-la. Ela fica guardada nesse aposento —
apontou Conan —, num nicho no chão debaixo de um deus de cobre shemita.
— Ele fala a verdade quanto a isso. — disse Promero — Pensei que nem chegasse a meia dúzia os
homens que conheceriam o segredo desse esconderijo.
— E depois de roubá-la — disse Dionus com um riso de desprezo —, você realmente a levaria para o
homem que o empregou? Ou iria guardá-la para você mesmo?
Novamente, os olhos ardentes faiscaram com ressentimento.
— Não sou um cachorro. — murmurou o bárbaro — Mantenho minha palavra.
— Quem o mandou aqui? — exigiu Demétrio, mas Conan se manteve num teimoso silêncio. Os
guardas estavam voltando de sua busca.
— Não há ninguém escondido nessa casa. — grunhiram — Vasculhamos tudo. Encontramos o alçapão
no telhado pelo qual o bárbaro entrou e a trava que ele cortou ao meio. Um homem que fugisse por aquele
caminho teria sido visto pelos guardas, a não ser que ele tenha fugido antes que chegássemos. Além
disso, ele teria que empilhar mobília para atingir o alçapão e isto não foi feito. Por que não poderia sair
pela porta da frente, antes que Arus desse a volta no edifício?
— Porque a porta estava travada por dentro, e, das únicas chaves que abrem aquela trava, uma delas
está com Arus e a outra ainda está pendurada no cinto de Kallian Publico.
— Achei a corda que o assassino usou. — anunciou um deles — Um cabo preto, mais grosso que o
braço de um homem, e curiosamente manchado.
— Onde está ele, então, seu idiota? — exclamou Dionus.
— No aposento pegado a este. — respondeu o guarda — Está enrolado num pilar de mármore, e não
tenho dúvida de que o assassino achou que ele não seria visto. Não consegui alcançá-lo, mas deve ser
ele.
Ele conduziu os outros para o aposento cheio de estátuas de mármore, e apontou para a coluna alta —
uma das muitas que serviam mais para ornamento e encaixe de estátuas, do que para fins práticos. E
então, ele parou e arregalou os olhos.
— Não está mais aí! — gritou.
— Ela nunca esteve aí. — bufou Dionus.
— Por Mitra, estava sim! — jurou o guarda — Enrolada ao redor do pilar, acima daquelas folhas
esculpidas. Estava tão escuro aí em cima que eu mal conseguia vê-la, mas estava lá.
— Você está bêbado. — disse Demétrio, voltando-se — É muito alto para um homem conseguir
chegar até aí, e ninguém além de uma serpente conseguiria subir por este pilar liso.
— Um cimério conseguiria. — murmurou um dos homens.
— É possível. E se Conan estrangulou Kallian, amarrou o cabo ao redor do pilar, atravessou o
corredor e se escondeu no aposento onde fica a escada, como então ele poderia ter retirado o cabo
depois de você tê-lo visto? Ele esteve conosco desde que Arus encontrou o corpo. Não, eu lhe afirmo
que Conan não cometeu o assassinato. Acredito que o verdadeiro assassino matou Kallian para apoderarse
do que quer que estivesse na Tigela, e está metido agora em algum esconderijo secreto do Templo. Se
não conseguirmos achá-lo, teremos de culpar o bárbaro para satisfazer a justiça; mas... onde está
Promero?
Eles voltaram até o lugar onde estava o cadáver, no corredor. Dionus berrou ameaçadoramente para
Promero, e o escrivão veio do aposento no qual estava a Tigela vazia. Ele tremia e seu rosto estava
pálido.
— Que foi agora, homem? — exclamou Demétrio irritado.
— Encontrei um símbolo no fundo da Tigela! — gaguejou Promero — Não é um hieróglifo antigo, mas
um símbolo que foi gravado recentemente! A marca de Thoth-Amon, o feiticeiro stígio, inimigo mortal de
Kalanthes! Ele encontrou a tigela em alguma caverna sinistra debaixo das pirâmides assombradas! Os
deuses dos tempos antigos não morriam como morrem os homens; eles caíam em sono profundo e seus
adoradores os trancavam em sarcófagos, para que nenhuma mão estranha pudesse perturbar seu sono!
Thoth-Amon mandou a morte para Kalanthes... a cobiça de Kallian fez com que ele soltasse este horror...
e ele está à espreita em algum lugar perto de nós. Agora mesmo, ele pode estar rastejando em nossa
direção...
— Seu tolo gaguejante! — trovejou Dionus repugnado, dando—lhe uma forte bofetada na boca.
Dionus era um materialista, com pouca paciência para estranhas especulações.
— Bem. Demétrio — disse ele, voltando-se para o inquisidor —; não vejo nada que se possa fazer, a
não ser prender o bárbaro...
O cimério gritou subitamente, e eles se viraram. Ele estava de olhos arregalados, voltados para a
porta de um aposento contíguo à sala das estátuas.
— Vejam! — exclamou ele — Vi algo se movendo naquela sala; vi através das cortinas. Algo que
atravessou o chão como uma grande sombra escura!
— Bah! — bufou Posthumo — Nós investigamos aquela sala...
— Ele viu alguma coisa! — berrou Promero com voz estridente e histérica — Este lugar está
amaldiçoado! Algo saiu do sarcófago e matou Kallian Publico! Esta coisa se escondeu onde nenhum
homem se esconderia, e agora espreita naquele aposento! Mitra nos defenda dos poderes das Trevas! —
disse, agarrando a manga de Dionus — Investigue aquela sala de novo!
O prefeito sacudia o escrivão de forma abjeta, e Posthumo inspirou-se a um lampejo de humor:
— Você mesmo vai investigá-la, escrivão! — ele disse, agarrando Promero pelo colarinho e pelo
cinto, e empurrando até a porta o pobre coitado que berrava, lançando-o para dentro da sala com tanta
violência que o escrivão caiu e ficou meio atordoado.
— Basta disso. — grunhiu Dionus, fitando o silencioso cimério. O prefeito ergueu a mão, quando foi
interrompido pela entrada de um guarda, arrastando uma figura delgada e ricamente vestida.
— Eu o vi andando furtivamente atrás do Templo. — disse o guarda, esperando por aprovação. Em
vez disso, recebeu xingamentos que fizeram seus cabelos eriçarem.
— Liberte esse senhor, seu tolo! — gritou o prefeito — Você não conhece Aztrias Petanius, sobrinho
do governador da cidade?
O guarda, envergonhado, largou o cativo enquanto o jovem nobre esfregava com cuidado sua manga
bordada.
— Guarde suas desculpas, meu bom Dionus. — ele murmurou afetadamente — Tudo pelo dever, eu
sei. Eu estava voltando para casa de uma farra, caminhando para libertar meu cérebro dos vapores do
vinho. Que temos aqui? Por Mitra, é um assassinato?
— É um assassinato, meu senhor. — respondeu o prefeito — Mas temos um suspeito que, embora
Demétrio pareça ter dúvidas sobre o assunto, com certeza irá para a fogueira por isso.
— Um bruto com aparência maléfica. — murmurou o jovem aristocrata
— Como podem duvidar de sua culpa? Jamais vi uma fisionomia tão maldosa.
— Sim, você viu, seu cão perfumado. — bufou o cimério —, quando me contratou para roubar a taça
zamoriana para você. Farra, hein? Bah! Você estava esperando nas sombras por mim, para eu lhe
entregar o fruto do roubo. Eu não teria revelado seu nome, se você falasse bem de mim. Agora, conte
para esses cães que me viu escalando o muro depois que o guarda fez a sua última ronda; assim, eles
saberão que não tive tempo para matar este suíno gordo antes que Arus entrasse e encontrasse o corpo.
Demétrio deu uma rápida olhada para Aztrias, que não mudou de cor.
— Se o que ele diz for verdade, meu senhor — disse o inquisidor —, isto o isenta da culpa, e
podemos abafar facilmente o assunto da tentativa de roubo. O cimério ganha dez anos de trabalhos
forçados por invadir uma casa; mas, se você quiser, arranjaremos a fuga dele e ninguém além de nós
saberá disso. Entendo... você não é o primeiro jovem nobre que teve de recorrer a estes meios para pagar
dívidas de jogo e coisas assim, mas pode contar com a nossa discrição.
Conan olhou esperançoso para o jovem nobre, mas Aztrias encolheu seus magros ombros e cobriu um
bocejo com a delicada mão branca.
— Eu não o conheço. — respondeu — Ele é um louco em dizer que eu o empreguei. Que receba o que
merece. Ele tem costas fortes; o trabalho nas minas lhe fará bem.
Os olhos de Conan arderam, e ele olhava como se tivesse sido picado. Os guardas ficaram tensos,
agarrando suas alabardas; em seguida relaxaram quando ele repentinamente deixou cair a cabeça, como
se estivesse resignado; nem mesmo Demétrio sabia se ele estava ou não observando-os debaixo de suas
pesadas sobrancelhas negras, com olhos que eram fendas de fogueiras azuis.
O cimério investiu sem nenhum aviso, como uma serpente dando o bote; sua espada reluziu à luz das
velas. Aztrias soltou um grito e sua cabeça rolou de seus ombros num jorro de sangue, seus traços
paralisados numa branca máscara de terror. Conan girou como um felino e investiu mortalmente nas
entranhas do inquisidor. O retraimento instintivo de Demétrio mal evitou a ponta, que afundou em sua
coxa, bateu do osso e atravessou sua perna. Demétrio caiu sobre um joelho, com um gemido de agonia.
Conan não parou. A alabarda que Dionus ergueu salvou o crânio do prefeito da lâmina sibilante, que
se desviou levemente ao cortar a haste da alabarda, errando o alvo dirigido para a cabeça, e decepou a
orelha direita do prefeito. A velocidade estonteante do bárbaro paralisou a guarda. Pegos de surpresa e
entorpecidos por sua rapidez e ferocidade, metade deles estaria derrubada antes de ter a chance de se
defender, se não fosse o corpulento Posthumo que, mais por sorte do que por habilidade, jogou os braços
ao redor do cimério, imobilizando o braço que segurava a espada. A mão esquerda de Conan arremeteuse
contra a cabeça do guarda, e Posthumo caiu gritando e se contorcendo no chão, apertando a órbita
vermelha gotejante onde antes havia um olho.
Conan se defendia das alabardas que voavam ao seu redor. Com um pulo, saiu do meio da roda de
seus inimigos e se postou onde Arus estava tateando por sua besta. Um chute violento no ventre derrubou
Arus, que ficou com o rosto esverdeado e ânsia de vômito, e o calcanhar da sandália de Conan esmagou a
boca do guarda. O pobre coitado gritou em meio a uma ruína de dentes despedaçados, o sangue jorrando
de seus lábios esmagados.
Em seguida, todos ficaram paralisados de horror por causa de um grito de sacudir a alma, que vinha
do aposento no qual Posthumo tinha jogado Promero. O escrivão veio cambaleando pela porta com
cortina de veludo e parou, sacudido por grandes soluços silenciosos; lágrimas escorriam por seu rosto
enrugado e pingavam de seus lábios trêmulos e moles; parecia um bebê idiota chorando.
Todos se detiveram espantados a olhar para ele — Conan, com sua espada gotejando; a polícia, com
suas alabardas erguidas; Demétrio, agachado no chão e tentando estancar o sangue que esguichava da
enorme ferida em sua coxa; Dionus, apertando o toco ensanguentado de sua orelha; Arus, chorando e
cuspindo pedaços de dentes quebrados — até Posthumo parou com seus uivos e piscava choramingando,
através da névoa sangrenta que lhe cobria a meia— visão.
Promero cambaleou até o corredor e caiu num baque surdo diante deles. Gritando em meio a uma
insuportável gargalhada aguda de loucura, ele soltou um grito estridente:
— O deus tem um pescoço longo! Há, há, há! Oh, um longo, maldito pescoço longo!
Em seguida, depois de uma convulsão aterradora, ele enrijeceu com um sorriso vago nos lábios, os
olhos fixos no teto em sombras.
— O homem está morto! — sussurrou Dionus pasmado, esquecendo-se de sua própria ferida e do
bárbaro que estava parado ao seu lado com a espada gotejante. Ele se curvou sobre o corpo e em seguida
se endireitou, com seus olhos de porco arregalados — Ele não está ferido. Em nome de Mitra, o que é
que tem naquele aposento?
Então todos eles, tomados pelo terror, precipitaram-se berrando pela porta afora, formando um
tumulto de empurrões e colisões, e saindo de lá como loucos. Arus os seguiu, e Posthumo se ergueu
cambaleante e foi tropeçando meio cego atrás deles, guinchando como um porco ferido e implorando—
lhes que não o deixassem para trás. Ele caiu, foi chutado e pisoteado por aqueles que gritavam de medo.
Mesmo assim, rastejou atrás deles, seguido por Demétrio, que mancava apertando sua coxa jorrando
sangue. O inquisidor tinha a coragem para enfrentar o desconhecido, mas estava enfraquecido e ferido, e
a espada que o derrubara ainda estava perto dele. Agarrando a coxa que esguichava sangue, ele
cambaleou atrás de seus companheiros. A guarda, o condutor da carruagem e os vigias, feridos ou não,
precipitaram-se berrando para a rua, onde os homens que guardavam a casa foram tomados de pânico e
se juntaram à fuga, sem esperar para perguntar por quê.
Conan ficou sozinho no corredor, diante dos três cadáveres no chão. O bárbaro ajeitou a espada na
mão e entrou no aposento. Dentro dele havia ricas tapeçarias de seda; almofadas e leitos de seda estavam
espalhados numa profusão descuidada e, acima de um pesado biombo dourado, um Rosto fitava o
cimério.
Conan fitou, maravilhado, a beleza fria e clássica daquele rosto, que não se parecia com nada que ele
vira entre os filhos dos homens. Nem fraqueza, nem misericórdia, nem crueldade, nem bondade, nenhuma
emoção humana transparecia naqueles traços. Poderiam ser a máscara de mármore de um deus, esculpida
pela mão de um mestre, a não ser pela presença inconfundível de vida neles — vida fria e estranha, que o
cimério jamais conhecera e que não podia entender. Passou—lhe pela cabeça como seria o corpo
escondido atrás do painel; devia ser perfeito, ele pensou, pois o rosto era de uma beleza não-humana.
Mas ele conseguia ver apenas a face divina, que oscilava de um lado a outro. Os lábios cheios se
abriram e pronunciaram uma única palavra, num tom rico e vibrante, igual aos sinos de ouro que tocam
nos templos de Khitai, perdidos na selva. Era uma língua desconhecida, esquecida antes que os reinos
dos homens surgissem, mas Conan sabia o que significava: — Venha!
E o cimério se aproximou, com um salto desesperado e um corte sibilante de sua espada. A bela
cabeça voou do topo do biombo, num jorro de sangue negro, e caiu aos seus pés; ele recuou, temeroso de
tocá-la. Então, sua pele se arrepiou, pois o painel estremeceu com as convulsões de algo que estava
atrás. Ele já havia visto e ouvido muitos homens morrendo, e jamais havia ouvido um ser humano emitir
sons assim em seus estertores de morte. Havia um ruído de bater e se arrastar, como se um grande cabo
estivesse sendo violentamente chicoteado.
Por fim, os movimentos cessaram, e Conan olhou cautelosamente atrás do biombo. Então, todo o
horror daquilo tudo tomou conta do cimério, e ele fugiu, sem diminuir a corrida, até que as torres de
Numália desaparecessem na aurora atrás dele. Pensar em Set era como um pesadelo, assim como pensar
nos filhos de Set que outrora reinavam na Terra e que agora dormiam nas cavernas soturnas debaixo das
negras pirâmides. Atrás daquele painel dourado não havia um corpo humano — somente os brilhantes
anéis sem cabeça de uma gigantesca serpente.
COLOSSO NEGRO
Black Colossus
O interesse de Rufia parece ter durado apenas o intervalo de tempo em que Conan trazia a pilhagem de Asgalun,
ou talvez ele a tenha trocado por um cavalo melhor antes de entrar para o serviço de Amalric da Nemédia, general
mercenário da princesa do pequeno reino fronteiriço de Khoraja. Aqui, ele logo sobe ao posto de capitão. O irmão de
Yasmela, o rei de Khoraja, está prisioneiro em Ophir, e as fronteiras do reino são atacadas por forças nômades
reunidas por um misterioso feiticeiro velado, Natohk.
“A Noite do Poder, quando o Destino caminhava pelos corredores do inundo como um colosso
recém-levantado de um antiqüíssimo trono de granito,..’’
E. Hoffmann Price. A Garota de Samarcand
I
Apenas o silêncio sepulcral pairava sobre as misteriosas ruínas de Kuthchemes, mas o Medo estava
lá; o Medo palpitava na mente de Shevatas, o ladrão, tornando-lhe a respiração rápida e os dentes
cerrados.
Ele permanecia ali, ele, o único átomo de vida em meio aos colossais monumentos de desolação e
decadência. Nem mesmo um urubu, tal qual um ponto negro, salpicava a vasta abóbada azul do céu, que o
sol esmaltava com seu calor.
De todo lado erguiam-se os restos sombrios de uma outra e esquecida era: enormes pilares quebrados,
lançando seus pináculos entalhados em direção ao céu; longas linhas irregulares de paredes caindo aos
pedaços; blocos de pedra ciclópicos tombados; ídolos despedaçados, cujas feições horrendas haviam
sido atenuadas pela corrosão dos ventos e das tempestades de areia. De horizonte a horizonte, nenhum
sinal de vida; apenas a vastidão assustadora do deserto, cortada pela tortuosa linha de um rio seco há
muito tempo. No meio da imensidão, as garras pontiagudas das ruínas, as colunas erguidas como mastros
rompidos de navios naufragados. E tudo isso dominado pelo enorme domo de marfim diante do qual
Shevatas tremia agora.
A base desse domo era um pedestal de mármore gigantesco, erguendo-se do que um dia havia sido um
terraço projetado sobre as margens do antigo rio. De graus largos conduziam a uma grande porta de
bronze no domo, que repousava sobre sua base como a metade de algum ovo titânico. O domo em si era
de puro marfim, brilhante como se mãos desconhecidas o mantivessem sempre polido.
Também reluziam a ponta dourada espiralada do pináculo e a inscrição que se estendia pela curvatura
do domo em metros de hieróglifos dourados. Nenhum homem na terra havia conseguido ler aqueles
caracteres, mas Shevatas estremecia diante das conjecturas sombrias que eles despertavam. Porque ele
vinha de uma raça muito antiga, cujos mitos remontavam a formas nem sequer sonhadas pelas tribos
contemporâneas.
Shevatas era esguio e ágil, como convinha a um mestre ladrão de Zamora. Tinha a pequena cabeça
redonda raspada e sua única roupa era uma tanga de seda escarlate. Como todos os de sua raça, possuía
pele bem escura e olhos negros aguçados que realçavam o rosto estreito de abutre. Seus dedos longos,
finos e inquietos eram rápidos, nervosos como as asas de uma mariposa. Do cinto de escamas douradas
pendia uma espada curta e estreita, com o punho cravejado de jóias, em uma bainha de couro
ornamentada. Shevatas tratava a arma com um cuidado aparentemente exagerado. Parecia até mesmo se
encolher para evitar o contato dela com sua coxa nua. Mas essa cautela não acontecia sem razão.
Aquele era Shevatas, o ladrão dos ladrões, cujo nome se pronunciava com admiração nos antros do
bairro do Marreta e nos recessos sombrios sob os templos de Bel, e que vivia nos cânticos e na mitologia
havia mil anos. No entanto, o medo lhe corroía o coração diante do enorme domo de marfim de
Kuthchemes. Qualquer tolo poderia ver que havia algo sobrenatural naquela estrutura; ela fora açoitada
pelos ventos e os sóis de 3 mil anos; no entanto, o ouro e o marfim brilhavam e reluziam nela como no
dia em que se erguera por mãos anônimas, nas margens de um rio também sem nome.
Aquela qualidade sobrenatural combinava com a aura em torno das ruínas mal-assombradas. O
deserto era o misterioso vazio que se estendia a sudeste das terras de Shem. Shevatas sabia que uma
jornada de poucos dias no lombo de um camelo na direção sudoeste levaria o viajante ao grande rio Styx,
no ponto em que ele se curvava em ângulo reto em relação a seu curso anterior e seguia para oeste até
desembocar, por fim, no oceano distante. No local dessa curva, começavam as terras da Stygia, a
sombria senhora do sul, cujos domínios, banhados pelo grande rio, erguiam-se à margem do deserto
circundante.
Para leste, Shevatas sabia, o deserto terminava nas estepes que prosseguiam até o reino hirkaniano de
Turan, florescente em esplendor bárbaro nas margens do grande mar interior. A uma semana de viagem
para o norte, o deserto se encontrava com um aglomerado de colinas áridas, além das quais ficavam os
planaltos férteis de Koth, o reino mais meridional das raças hiborianas. A oeste, o deserto fundia-se com
as planícies de Shem, que se estendiam ao longe até o oceano.
Tudo isso Shevatas sabia sem estar particularmente consciente de seu saber, do mesmo modo que um
homem conhece as ruas de sua cidade. Ele era um viajante de longas jornadas e já havia saqueado os
tesouros de muitos reinos. Mas, agora, hesitava e estremecia diante da maior aventura e do mais
portentoso de todos os tesouros.
Naquele domo de marfim, estavam os ossos de Thugra Khotan, o terrível feiticeiro que dominara
Kuthchemes 3 mil anos atrás, quando os reinos de Stygia e Acheron estendiam-se bem para o norte do
grande rio, sobre as planícies de Shem e os planaltos distantes. Então, a grande migração dos hiborianos
descera para o sul, vinda da terra natal da raça no pólo norte. Foi uma migração titânica, que se
prolongou por séculos e eras. Mas, no reinado de Thugra Khotan, o último mágico de Kuthchemes,
bárbaros de olhos cinzentos e cabelos claros vestidos com peles de lobo e armaduras haviam descido do
norte até os ricos planaltos para devastar o reino de Koth com suas espadas de ferro. Invadiram
Kuthchemes como uma maré violenta, inundando de sangue as torres de mármore, e o reino de Acheron
desabara em fogo e ruínas.
Mas, enquanto eles destroçavam as ruas da cidade e decepavam os arqueiros como se fossem espigas
de trigo maduro, Thugra Khotan engoliu um estranho e terrível veneno, e seus sacerdotes mascarados o
encerraram em uma tumba que ele mesmo havia preparado. Seus devotos morreram em torno da
construção em um holocausto escarlate, mas os bárbaros não conseguiram abrir a porta, nem mesmo
danificar a estrutura com marretas ou fogo. Assim, eles foram embora, deixando a grande cidade em
ruínas e, em seu sepulcro com dossel de marfim, o grande Thugra Khotan continuou dormindo intocado,
enquanto os lagartos da desolação roíam os pilares desmoronados e o próprio rio que havia banhado suas
terras em antigos tempos afundava nas areias do deserto e secava.
Muitos ladrões já haviam tentado recuperar o tesouro que, segundo as fábulas, estava empilhado sobre
os ossos em decomposição dentro do domo. E muitos ladrões haviam sucumbido à porta do túmulo, e
muitos outros tinham sido atormentados por sonhos monstruosos e acabaram mortos com os lábios
espumando loucura.
Por isso, Shevatas estremecia diante do túmulo, e não só por causa da lenda sobre a serpente que,
segundo se dizia, guardava os ossos do feiticeiro. Sobre todos os mitos de Thugra Khotan, pairavam o
horror e a morte. De onde o ladrão se encontrava, podia ver as ruínas do grande saguão no qual cativos
acorrentados haviam se ajoelhado às centenas, durante os festivais, para ter suas cabeças cortadas pelo
rei-sacerdote em honra a Set, o deus-serpente de Stygia. Em algum lugar das proximidades, estivera
situado o poço escuro e terrível onde vítimas, aos gritos, eram lançadas como alimento para um monstro
amorfo e sem nome que saía de uma caverna mais infernalmente profunda. As lendas haviam tornado
Thugra Khotan sobre-humano; e ele ainda era venerado num culto degradado, híbrido, durante o qual os
devotos imprimiam a imagem do feiticeiro em moedas para pagar a passagem de seus mortos pelo grande
rio de trevas do qual o Styx era apenas a sombra material. Shevatas vira essa imagem em moedas
roubadas sob a língua dos cadáveres, e ela estava gravada de forma indelével em sua mente.
Mas ele deixou de lado seus receios e subiu até a porta de bronze, cuja superfície lisa não oferecia
nenhum trinco ou maçaneta. Mas não fora à toa que ele entrara furtivamente em cultos sombrios, escutara
os sussurros pavorosos dos devotos de Skelos sob arvoredos à meia-noite e lera os livros proibidos
encadernados com ferro de Vathelos o Cego.
Ajoelhando-se diante do portal, ele examinou o batente com os dedos ágeis; seu tato sensível
encontrou ranhuras muito diminutas para os olhos detectarem ou dedos menos hábeis perceberem.
Pressionou-as com cuidado, seguindo um sistema peculiar, enquanto murmurava antigas palavras rituais.
Quando pressionou a última saliência, ele se ergueu com fantástica rapidez e aplicou um golpe seco com
a palma da mão aberta no centro exato da porta.
Não se ouviu nenhum ranger de mola ou dobradiça, mas a porta recuou para dentro e Shevatas soltou
um suspiro de alívio entre os dentes, cerrados de tensão. Um curto e estreito corredor revelou-se. A porta
havia deslizado ao longo dele e se encontrava, agora, encaixada na outra extremidade do corredor. O
chão, o teto e as laterais da abertura em forma de túnel eram de marfim. De repente, de um buraco em um
dos lados, surgiu um animal silencioso, que se contorcia; ele se ergueu e fitou o intruso com terríveis
olhos luminosos — era uma serpente de seis metros de comprimento, coberta de escamas iridescentes.
O ladrão não perdeu tempo conjecturando que buraco escuro abaixo do domo teria proporcionado
alimento ao monstro. Rapidamente, puxou a espada, de onde pingava um líquido esverdeado exatamente
igual ao que escorria das presas do réptil, em forma de cimitarra. A lâmina estava embebida do mesmo
veneno da serpente, e a história da obtenção de tal peçonha nos pântanos mal-assombrados de Zingara se
prestaria, só ela, à escrita de uma outra saga.
Shevatas avançou com cautela, joelhos ligeiramente dobrados, pronto a pular, como um raio, para
qualquer um dos lados. E precisou de toda essa velocidade coordenada quando a serpente arqueou o
pescoço e atacou como um relâmpago, projetando-se em seu comprimento total. Mas mesmo com toda
sua rapidez de reflexos, Shevatas só não morreu naquele momento por sorte. Seus planos tão bem
traçados de pular de lado e golpear o pescoço estendido foram totalmente inutilizados pela velocidade
estonteante do ataque réptil. O ladrão só teve tempo de esticar a espada à sua frente, fechar os olhos e
gritar. Então, a espada foi arrancada de sua mão e o corredor encheu-se de um terrível barulho de
vergastadas e açoites.
Ao abrir os olhos, surpreso por ainda estar vivo, Shevatas viu o monstro ondular e enrolar sua forma
esguia em contorções fantásticas, com a espada enfiada nas mandíbulas gigantescas. Um puro acaso o
fizera acertar o golpe que desferira às cegas. Poucos momentos depois, a serpente desabou em brilhantes
e quase imóveis espirais, impotente contra o efeito do veneno.
O ladrão pulou-a com cautela e empurrou a porta, que, desta vez, deslizou para o lado e revelou o
interior do domo. Shevatas deu um grito; em lugar da total escuridão, tinha diante de si uma luz carmim
que pulsava com intensidade quase insuportável para olhos mortais. O brilho vinha de uma gigantesca
jóia vermelha pendurada no alto do arco abobadado do domo. Embora estivesse acostumado a
contemplar riquezas, Shevatas ficou boquiaberto.
O tesouro estava ali, em uma profusão atordoante: pilhas de diamantes, safiras, rubis, turquesas,
opalas, esmeraldas; torres de jade, âmbar e lápis-lazúli; pirâmides de ouro; santuários de lingotes de
prata; espadas cravejadas de jóias em bainhas de ouro; elmos de ouro com cristas de crina de cavalo
coloridas ou plumas negras e escarlates; coletes de escamas de prata; estribos incrustados de jóias
usados por reis guerreiros mortos havia 3 mil anos; taças esculpidas em uma única jóia; crânios
revestidos de ouro com selenitas no lugar de olhos; gargantilhas de dentes humanos cravejados de jóias.
O solo de marfim estava coberto de uma camada de pó de ouro de centímetros de profundidade que
reluzia sob o brilho avermelhado com um milhão de pontinhos cintilantes. O ladrão via-se em um paraíso
de magia e esplendor, usando suas sandálias para pisar em um chão de estrelas.
Mas seus olhos estavam fixos na plataforma de cristal que se erguia no meio do aposento, diretamente
sob a jóia vermelha, e onde deveriam estar repousando os ossos envelhecidos, tornando-se pó com o
arrastar dos séculos. Enquanto Shevatas olhava, o sangue sumia de seu rosto escuro; sua medula se via
transformada em gelo e a pele crispava de terror, enquanto os lábios se moviam sem produzir nenhum
ruído.
Mas, de repente, ele encontrou a voz num grito medonho, que ecoou o pavor sob as arcadas do domo.
Depois, o silêncio dos milênios voltou a tomar conta das ruínas da misteriosa Kuthchemes.
II
Rumores atravessaram as planícies e chegaram até as cidades dos hiborianos. A palavra correu pelas
caravanas, longas filas de camelos arrastaram-se pela areia, conduzidas por homens esguios de olhar
arguto e kaftans brancos. A novidade lhes foi transmitida nos campos pelos pastores de nariz recurvo;
dos habitantes de tendas, ela passou para os habitantes das cidades de pedra, onde reis com barbas
negras e crespas veneravam deuses barrigudos em curiosos rituais. A palavra atravessou a faixa de
colinas, onde tribos esquálidas atacavam as caravanas. Os rumores chegaram aos planaltos férteis, nos
quais cidades prósperas erguiam-se junto a lagos e rios azuis. Os rumores marcharam pelas largas
estradas brancas apinhadas de carros de boi e rebanhos barulhentos, mercadores ricos, cavaleiros em
armaduras de aço, arqueiros e sacerdotes.
Eles eram rumores do deserto que se estende a leste de Stygia, bem ao sul das colinas de Koth. Um
novo profeta havia surgido entre os nômades. Os homens falavam de uma guerra tribal, de um
ajuntamento de urubus a sudeste e de um líder terrível que conduzia hordas cada vez maiores à vitória.
Os estígios, sempre uma ameaça para as nações do norte, aparentemente não estavam relacionados a esse
movimento, uma vez que vinham juntando exércitos em suas fronteiras orientais e seus sacerdotes
patrocinavam magias para combater as mandingas do feiticeiro do deserto, que os homens chamavam de
Natohk o Velado; pois seu rosto estava sempre coberto.
Mas a maré de devastação seguiu para noroeste e os reis de barbas negras morreram diante dos altares
de seus deuses barrigudos, e suas cidades de pedras foram inundadas de sangue. Os homens diziam que
os planaltos dos hiborianos eram a meta de Natohk e dos devotos que o seguiam cantando.
Ataques vindos do deserto não eram incomuns, mas aquele movimento parecia ser algo maior. Os
boatos diziam que Natohk havia reunido 30 tribos nômades e 15 cidades em seu séquito e um príncipe
estígio rebelado juntara-se a ele. Esse fato conferia à situação um aspecto de verdadeira guerra.
De forma característica, a maioria das nações hiborianas tendia a ignorar a ameaça a cada dia maior.
Mas em Khoraja, tomada de mãos shemitas pela espada de aventureiros kothianos, o alerta foi dado.
Como ficava a sudeste de Koth, ela iria enfrentar todo o peso da invasão. E seu jovem rei estava
prisioneiro do ardiloso soberano de Ophir, que hesitava entre devolvê-lo em troca de um enorme resgate
ou entregá-lo a seu inimigo, o rei de Koth, que não tinha ouro para oferecer, mas poderia pagar por meio
de um tratado vantajoso. Enquanto isso, o governo do sofrido reino estava nas mãos da jovem princesa
Yasmela, irmã do rei.
Menestréis cantavam a beleza de Yasmela por todo o mundo ocidental, e ela guardava o orgulho de
pertencer a toda uma dinastia real. Naquela noite, porém, seu orgulho lhe foi arrebatado sombriamente.
Em seu quarto, que tinha o teto de lápis-lazúli, o chão de mármore forrado de peles raras e as paredes
cobertas de frisos de ouro, dez moças, filhas de nobres, com os membros esguios enfeitados com
braceletes e tornozeleiras incrustadas de jóias, dormiam sobre divãs de veludo em torno da plataforma
de ouro sobre a qual se apoiava a cama real em seu dossel de seda.
Mas a princesa Yasmela não descansava no leito macio. Estava deitada de bruços, nua, sobre o
mármore frio, como a mais humilde suplicante, os cabelos escuros soltos sobre os ombros brancos, os
dedos finos entrelaçados. Contorcia-se em um horror que lhe congelava o sangue nos membros graciosos
e dilatava seus belos olhos, arrepiava-lhe a raiz dos cabelos e fazia um estremecimento percorrer-lhe a
espinha.
Acima dela, no canto mais escuro da câmara de mármore, espreitava uma sombra vasta e informe. Não
era nenhum ser vivo de carne e osso. Era um coágulo de trevas, uma névoa diante dos olhos, um
monstruoso incubo nascido da noite que poderia ser confundido com a fantasia de um cérebro sonolento,
não fossem os pontos amarelos fulgurantes luzindo como dois olhos na escuridão.
Além disso, uma voz saía da sombra — uma sibilância grave, tênue, fantasmagórica, que parecia mais
o silvo abominável e suave de uma serpente do que qualquer coisa que pudesse ser produzida em lábios
humanos. O som e as palavras enchiam Yasmela de um terror tão intolerável que ela encolhia e contorcia
o corpo esguio como se estivesse sendo açoitada, como se a contorção física pudesse livrar sua mente da
torpeza insinuante daquela voz.
— Você está marcada para ser minha, princesa — dizia o murmúrio. — Antes de acordar do longo
sono, eu havia te marcado e desejado, mas estava preso ao antigo feitiço pelo qual escapei de meus
inimigos. Sou a alma de Natohk o Velado! Olhe bem para mim, princesa! Logo irá me contemplar em
minha forma corpórea e irá me amar!
O sibilo fantasmagórico transformou-se em risos lascivos e Yasmela gemeu e bateu os punhos frágeis
no chão de mármore, aterrorizada.
— Durmo na câmara palaciana de Akbitana — prosseguiu o sibilo —. Lá, meu corpo repousa em sua
moldura de carne e osso. No entanto, ele é apenas uma casca vazia da qual o espírito saiu por alguns
momentos. Se você pudesse enxergar o que se passa fora do palácio, perceberia a inutilidade de tentar
resistir. O deserto é um roseiral sob a lua, onde desabrocha o fogo de 100 mil soldados. Como uma
avalanche varrendo tudo à sua frente, aumentando seu volume e força, vou devastar a terra de meus
antigos inimigos. Seus reis vão fornecer crânios para eu usar como taças, suas mulheres e filhos serão
escravos dos escravos de meus escravos. Fiquei mais forte depois dos longos anos de sono... Mas você
será minha rainha, princesa! Vou lhe ensinar as antigas e esquecidas técnicas do prazer. Nós... — Diante
da torrente de obscenidades que se derramou do sombrio colosso, Yasmela apertou os dentes e
contorceu-se como se um chicote ferisse sua delicada pele nua.
— Lembre-se! — sussurrou a detestável sombra. — Não se passarão muitos dias antes de eu vir
reivindicar o que é meu!
Yasmela apertou o rosto contra o chão e tampou os ouvidos com as mãos, mas mesmo assim teve a
sensação de escutar um ruído estranho, como o bater de asas de um morcego. Assustada, ergueu os olhos,
mas viu apenas a lua que brilhava pela janela, lançando luz como uma espada de prata sobre o local onde
o fantasma havia estado. Trêmula, ela se levantou e cambaleou até um divã, onde se deixou cair,
chorando histericamente.
As moças continuaram dormindo; todas exceto uma, que se sentou, bocejou, espreguiçou-se e olhou em
volta. Ao ver Yasmela chorando, correu até ela e a abraçou.
— Foi... foi...? — os olhos escuros da moça arregalaram-se de medo.
— Oh, Vateesa, ele veio de novo! Eu o vi, ouvi sua voz! Ele disse que seu nome é... Natohk! E
Natohk! Não é um pesadelo. Ele ficou aqui me apavorando enquanto as meninas dormiam como se
estivessem drogadas. O que eu devo fazer?
Vateesa girava o bracelete de ouro em seu braço arredondado enquanto meditava.
— Princesa, é evidente que nenhum poder mortal poderá lidar com ele, e o talismã que os sacerdotes
de Ishtar lhe deram não será útil. Portanto, procure o oráculo esquecido de Mitra.
Apesar de todo o terror por que acabara de passar, Yasmela estremeceu. Os deuses de ontem se
tornam os demônios de amanhã. Os kothianos tinham abandonado o culto de Mitra havia muito tempo e
esqueceram-se dos atributos do deus hiboriano universal. Yasmela tinha a vaga impressão de que, sendo
muito antiga, a divindade também deveria ser muito terrível. Ishtar já era bastante temível, como todos os
deuses de Koth. A cultura e a religião kothianas haviam passado por uma sutil combinação com
tendências shemitas e estígias. Os hábitos simples dos hiborianos tinham se modificado em grande escala
com a influência dos modos sensuais, porém despóticos, dos povos do leste.
— Mas Mitra me ajudará? — indagou Yasmela, segurando com força o pulso de Vateesa. —
Veneramos Ishtar há tanto tempo...
— Claro que ajudará! — Vateesa era filha de um sacerdote ophireano que trouxera seus costumes
consigo quando chegara a Khoraja, fugindo de inimigos políticos. — Procure o santuário! Eu irei com
você.
— Está bem. — Yasmela levantou-se, mas objetou quando Vateesa se preparou para vesti-la. — Não
é adequado que eu apareça diante do santuário vestida em sedas. Irei nua, de joelhos, como convém a
uma suplicante, para que Mitra não pense que me falta humildade.
— Que bobagem! — Vateesa não tinha muito respeito pelo que julgava ser um modo falso de culto. —
Mitra certamente prefere ver as pessoas de pé à sua frente, e não rastejando como vermes ou derramando
o sangue de animais sobre seus altares.
Deixando-se convencer, Yasmela permitiu que a moça a ajudasse a colocar o vestido leve de seda
sem mangas, sobre o qual vestiu uma túnica do mesmo tecido, amarrada na cintura por uma faixa larga de
veludo. Chinelos de cetim foram calçados em seus pés delicados e alguns toques hábeis dos dedos
rosados de Vateesa arrumaram seus cabelos escuros cacheados. Em seguida, a princesa seguiu a moça,
que puxou para o lado a pesada tapeçaria bordada com fios de ouro e abriu o ferrolho da porta que ela
escondia. Isso as levou para um corredor estreito e tortuoso, que as duas percorreram depressa até uma
outra porta desembocando num grande saguão. Lá, encontraram um guarda com elmo e colete dourados e
uma longa lança nas mãos.
Um movimento de Yasmela conteve sua exclamação surpresa e, depois de saudá-la, ele retomou a
posição ao lado da porta, imóvel como uma estátua de bronze.
As moças atravessaram o saguão, que parecia imenso e sinistro à luz das tochas presas ao longo das
paredes altas, e desceram uma escada sombria que fez Yasmela estremecer. Três lances para baixo,
pararam por fim em um corredor estreito cujo teto em arcadas era cravejado de jóias, o chão montado
com blocos de cristal e as paredes decoradas com frisos de ouro. No final do corredor, chegaram, de
mãos dadas, a uma grande porta dourada.
Vateesa a abriu, revelando um santuário havia muito esquecido, exceto pelos poucos devotos e por
visitantes reais que vinham à corte de Khoraja, em razão dos quais o templo era mantido. Yasmela nunca
havia entrado ali antes, embora tivesse nascido no palácio. Apesar de simples e despojado se comparado
ao luxo dos santuários de Ishtar, havia nele uma aura de dignidade e beleza características da religião de
Mitra.
O teto era alto, mas, em lugar do formato de domo, compunha-se de mármore branco plano, assim
como o chão e as paredes, adornadas com um estreito friso dourado. Atrás do altar de jade verde-claro,
não maculado por sacrifícios, ficava o pedestal onde se sentava a representação material da divindade.
Yasmela fitou com espanto a curva dos ombros magníficos, as feições bem marcadas, os olhos grandes e
diretos, a barba patriarcal e os cabelos espessos cacheados, presos por uma faixa na altura das têmporas.
Embora ela não soubesse, aquela era uma bela obra de arte — a expressão artística livre de uma raça de
alto padrão estético, sem a interferência do simbolismo convencional.
Yasmela ajoelhou-se e se prostrou ao chão, apesar dos conselhos de Vateesa, que, na dúvida, seguiu o
exemplo da princesa; pois, afinal, ela não passava de uma menina, e aquele era o fabuloso templo de
Mitra. Mas, mesmo assim, não pôde deixar de cochichar no ouvido de Yasmela.
— Este é apenas um símbolo do deus. Ninguém pode saber como Mitra realmente é. Isto apenas o
representa em uma forma humana idealizada, tão próxima da perfeição quanto a mente humana pode
imaginar. Ele não mora nesta pedra fria, como seus sacerdotes dizem que Ishtar faz. Ele está em toda
parte... acima de nós e à nossa volta, e nos lugares altos entre as estrelas. Mas aqui seu ser se concentra.
Portanto, pode chamá-lo.
— O que devo dizer? — sussurrou Yasmela, apavorada.
— Antes que você fale, Mitra já sabe o que está na sua mente... — começou Vateesa.
Então, as duas moças assustaram-se ao ouvir uma voz sair do ar acima delas. Os tons profundos,
calmos e harmoniosos não emanavam especificamente da imagem, mas da câmara como um todo.
Yasmela tremeu novamente diante de mais aquela voz sem corpo falando com ela, mas, dessa vez, foi de
surpresa, e não de horror ou repulsa.
— Minha filha, não fale, sei do que você precisa — disse a voz, como ondas musicais batendo
ritmicamente em uma praia dourada. — De uma maneira única você salvará seu reino e, salvando-o,
libertará o mundo todo das presas da serpente renascida das trevas de muitas eras. Vá às ruas sozinha e
coloque seu reino nas mãos do primeiro homem com quem se encontrar.
Os tons profundos cessaram e as moças se entreolharam. Então, levantaram-se e saíram do templo
para fazer o caminho de volta. Permaneceram em silêncio até entrarem novamente no quarto de Yasmela.
A princesa foi à janela e fitou entre as barras douradas. A lua havia sumido. Era alta madrugada. Os sons
de cantos interromperam-se nos jardins e terraços da cidade. Khoraja dormia sob as estrelas, que
pareciam se refletir nas tochas faiscantes dos jardins, ao lado das ruas e sobre o teto das casas onde o
povo adormecera.
— O que você vai fazer? — sussurrou Vateesa, trêmula.
— Pegue meu manto — respondeu Yasmela, resoluta.
— Mas sozinha, na rua, a esta hora! — exclamou Vateesa.
— Mitra falou — respondeu a princesa. — Pode ter sido a voz do deus ou um truque de um sacerdote.
Não importa. Eu vou!
Envolvida em um volumoso manto de seda e com a cabeça protegida por um capuz de veludo do qual
saía um véu que lhe cobria o rosto, ela atravessou rapidamente os corredores e aproximou-se de uma
porta de bronze, onde uma dúzia de guardas armados com lanças surpreenderam-se ao vê-la passar.
Aquela ala do palácio conduzia diretamente à rua; em todos os outros lados, o prédio era cercado por
amplos jardins, circundados por um muro alto. Yasmela saiu à rua iluminada por tochas a intervalos
regulares.
Ela hesitou; então, antes que perdesse a coragem, fechou a porta atrás de si. Um leve tremor sacudiu
seu corpo quando olhou a rua silenciosa e vazia. Filha de aristocratas, ela nunca havia se aventurado
sozinha fora do palácio. Yasmela respirou fundo e subiu a rua rapidamente. Seus pés calçados em
chinelos de cetim tocavam de leve o pavimento, mas mesmo aquele som suave fazia seu coração
disparar. Ela imaginava que seus passos ecoavam como trovoadas na cidade fúnebre, despertando seres
raivosos com olhos de rato em tocas escondidas entre os esgotos. Cada sombra parecia ocultar um
assassino à espreita, cada porta, mascarar os furtivos maníacos das trevas.
Sobressaltou-se violentamente. A sua frente, um homem apareceu na rua sinistra. Ela se escondeu,
rápida, em um canto escuro, com o coração aos trancos. O homem que se aproximava não vinha furtivo
como um ladrão, nem tímido como um viajante amedrontado. Caminhava pela rua escura como alguém
que não precisava nem queria se esconder. Seus passos ecoavam no pavimento. Quando ele passou perto
de uma tocha, Yasmela pôde enxergá-lo claramente: um homem alto, vestido com a cota de malha longa
de um mercenário. Tomando coragem, ela saiu da sombra, enrolando-se no manto.
— Alto lá! — A espada do homem saiu até a metade da bainha.
Ele estancou o movimento quando se deu conta de que era apenas uma mulher aquela pessoa surgida
repentinamente, mas perscrutou a rua num segundo para se certificar de que ela estava mesmo sozinha.
Ele a encarou com a mão no punho da espada, projetada por baixo do manto escarlate, sobre o uniforme.
A luz da tocha, seus olhos tinham um brilho funesto.
Logo à primeira vista, Yasmela percebeu que ele não era kothiano; quando ele falou, soube que não
era sequer hiboriano. Estava vestido como um capitão dos mercenários e, nesse grupo, havia homens de
muitas terras, tanto bárbaros como estrangeiros civilizados. Havia algo rude naquele guerreiro de sina
bárbara. Os olhos do homem da civilização, que seja louco ou criminoso, jamais emanariam tal fogo.
Havia odor de vinho no ar que respirava, mas não cambaleava nem gaguejava.
— Eles a trancaram fora de casa? — perguntou o homem, usando o idioma kothiano bárbaro e
estendendo o braço na direção de Yasmela. Os dedos se fecharam levemente sobre o pulso arredondado
da princesa, mas ela sentiu que ele poderia lhe quebrar os ossos sem o menor esforço. — Vim da última
taverna aberta. Que Ishtar leve os reformistas fracotes. Fechar as casas de birita! “Os homens têm que
dormir em vez de se embebedar”, eles dizem. E, para que possam trabalhar e lutar melhor por seus
mestres! Eunucos maricas, é o que eles são. Quando servia com os mercenários de Corinthia, nós
enchíamos a cara a noite toda e lutávamos o dia inteiro. E, o sangue escorria por nossas espadas. Mas, e
você, menina? Tire esse véu...
Ela evitou o aperto de mão do homem com um leve movimentar-se, tentando não lhe demonstrar
repulsa. Percebia o perigo que corria sozinha, ali, ao lado de um bárbaro embriagado. Se revelasse sua
identidade, ele poderia rir dela ou ir embora. Ou puxar a espada e lhe cortar a garganta. Esses homens
rudes faziam coisas estranhas e inexplicáveis. Yasmela combateu o medo que se avolumava.
— Não aqui - ela riu. — Venha comigo...
— Para onde? - O sangue poderia ter lhe subido à cabeça, mas ele continuava alerta como uma
raposa. — Está me levando para algum covil de ladrões?
— Não, não, eu juro! — Yasmela tinha dificuldade para evitar a mão que procurava novamente seu
véu.
— Para o diabo, sabichona! — ele resmungou. — Você é má como uma hirkaniana, você e esse
maldito véu. Ande logo, quero ver sua cara!
Antes que Yasmela pudesse evitar, o homem lhe puxou o manto e ela ouviu um assobio baixo sair por
entre seus dentes. Ele ficou ali parado a observá-la, como se a visão do traje luxuoso lhe trouxesse
subitamente à sobriedade. Ela notou o ar de desconfiança em seus olhos.
— Quem é você, afinal? — murmurou ele. — Não é nenhuma órfã das ruas...a menos que seu amante
tenha roubado o palácio para lhe conseguir essas roupas.
— Não importa. — Ela ousou colocar a mão clara sobre o braço musculoso protegido pela armadura.
- Vamos sair da rua.
Ele hesitou por um instante, depois deu de ombros. Yasmela imaginou que talvez ele a visse como uma
mulher nobre cansada de amantes polidos, disposta a se entreter. Ele lhe devolveu o manto e a seguiu.
Com o canto do olho, ela o observava enquanto desciam a rua juntos. Sua armadura não conseguia
conter as linhas de uma força descomunal. Tudo em torno dele era assim imenso, natural, indomesticável.
Ele era estranho a ela, como uma selva, tão diferente dos cortesãos afáveis a que estava acostumada.
Ela o temeu, disse a si mesma que odiava aquela força bruta e a indelicadeza bárbara; mas algo de
excitação e perigo se movia dentro dela a cada vez que o fitava. Sentira a mão poderosa em seu braço e
um calor a percorrera por dentro só de lembrar desse breve contato. Muitos homens haviam se curvado
aos pés de Yasmela. Mas ali estava um que parecia jamais ter se ajoelhado diante de ninguém. Sentia-se
como se estivesse conduzindo um tigre solto; estava assustada e, ao mesmo tempo, fascinada com o
próprio medo.
Ela parou junto à porta do palácio e, examinando furtivamente seu companheiro, não viu qualquer
desconfiança em seus olhos.
— Palácio, hein? — murmurou ele. — Você é uma dama de companhia?
Ela se perguntou, com perturbadora sensação de ciúme, se alguma de suas serviçais já levara aquele
guerreiro à morada real. Os guardas nem se mexeram quando Yasmela passou com o acompanhante, mas
ele os fitou com desconfiança.
Chegando a uma câmara interna, ele observou as tapeçarias e sorriu ao ver um jarro de cristal com
vinho sobre uma mesa de ébano. Sem cerimônia, pegou-o e levou-o aos lábios com um suspiro satisfeito.
Vateesa entrou correndo, ofegante.
— Oh, minha princesa...
— Princesa!
O jarro de vinho espatifou-se no chão. Com um movimento rápido demais à percepção visual, o
mercenário arrancou o véu que cobria o rosto de Yasmela. Depois recuou, praguejando, e puxou a longa
espada de aço reluzente. Seus olhos cintilavam como os de um tigre encurralado. A tensão embriagava o
ar, como na pausa antes do desabar de uma tempestade. Vateesa caiu no chão, muda de terror, mas
Yasmela enfrentou o bárbaro furioso sem pestanejar. Sabia que sua vida estava em jogo: desconfiado e
amedrontado, ele não hesitaria em matá-la à menor provocação. Mas, ao mesmo tempo, sentia uma certa
emoção diante do perigo.
— Não tenha medo — disse ela. — Sou Yasmela, mas não há razão para me temer.
— Por que me trouxe para cá? — Seus olhos em fogo percorriam inquietos a sala. — Que tipo de
armadilha é esta?
— Não há nenhum armadilha. Trouxe-o aqui porque você pode me ajudar. Consultei os deuses —
Mitra — e fui instruída a pedir auxílio ao primeiro homem que encontrasse na rua.
Aquilo ele compreendia. Os bárbaros tinham seus oráculos. Baixou a espada, embora a mantivesse na
mão.
— Bem, se você é Yasmela, precisa de ajuda — grunhiu. — Seu reino está em uma encrenca dos
diabos. Mas como eu posso ajudar você? Se quiser que eu corte algum pescoço, claro que...
— Sente-se — pediu ela. — Vateesa, traga-me vinho.
Ele atendeu à princesa, tomando cuidado, ela percebeu, de se sentar com as costas apoiadas em uma
parede sólida, de onde poderia observar a sala toda.
Colocou a espada sobre os joelhos e Yasmela fitou a arma com fascinação. O aço brilhante parecia
refletir histórias de matanças e saques. Ela duvidava até mesmo que pudesse levantar tal espada, mas
aquele mercenário poderia usar uma só mão para erguê-la: a facilidade era idêntica àquela com que ela
manejava um chicote. Yasmela notou o tamanho e a força de suas mãos. Não eram as patas de um
troglodita. Sentiu culpa ao imaginar aqueles dedos fortes movendo-se por seus cabelos escuros.
Ele pareceu ficar mais tranqüilo quando Yasmela se sentou em um divã à frente. Agora, a princesa
podia ver mais claramente como ele se diferenciava dos hiborianos. Em seu rosto moreno e marcado por
cicatrizes havia um ar soturno; e, embora ele não parecesse mau, havia mais do que uma sugestão de algo
sinistro em seus traços, tudo realçado pelos penetrantes olhos azuis. Sobre a testa larga, os cabelos
revoltos eram tão negros quanto as asas de um corvo.
— Quem é você? — ela perguntou, de repente.
— Conan, um capitão dos lanceiros mercenários — respondeu ele, esvaziando o copo de vinho com
um só gole e estendendo-o para que lhe servissem mais. — Nasci na Ciméria.
O nome significava pouco para ela. Sabia apenas vagamente que se tratava de um país agreste e
sombrio bem ao norte, para além dos últimos postos avançados das nações hiborianas, habitado por uma
raça violenta, sombria. Era a primeira vez que via um deles.
Apoiando o queixo nas mãos, ela o fitou com os olhos profundamente escuros que haviam escravizado
vários corações.
— Conan da Ciméria — disse —, você falou que eu preciso de ajuda. Por quê?
— Bem, qualquer homem pode ver isso. O rei, seu irmão, está em uma prisão ophireana; Koth trama
para escravizar você; aquele feiticeiro espalha morte e destruição por Shem; e, o que é pior, seus
soldados desertam dia após dia.
Ela demorou um pouco a responder. Era uma experiência nova ouvir um homem falar de maneira tão
objetiva com ela, sem as expressões polidas dos cortesãos.
— Por que meus soldados estão desertando, Conan?
— Alguns estão sendo contratados por Koth — respondeu ele, mais uma vez com a mão sobre o jarro
de vinho. — Muitos acham que Khoraja está acabada como Estado independente. Muitos temem pelas
histórias desse tal Natohk.
— Os mercenários vão continuar comigo?
— Enquanto você nos pagar bem — Conan respondeu com franqueza. — Sua política não significa
nada para nós. Você pode confiar em Amalric, nosso general, mas os outros entre nós somos apenas
homens comuns que amam pilhar. Se você pagar o resgate pedido por Ophir, dizem-nos, não terá como
nos retribuir. Nesse caso, é possível que nos voltemos para o rei de Koth, embora eu não tenha por amigo
um maldito miserável como aquele. Ou podemos saquear esta cidade. Em uma guerra civil, os saques são
sempre compensadores.
— Por que vocês não se juntariam a Natohk?
— Ele poderia nos pagar com o quê? Com ídolos barrigudos de bronze que roubou das cidades
shemitas? Enquanto você estiver lutando contra Natohk, pode confiar em nós.
— Você acha que seus companheiros o seguem? — ela perguntou, abruptamente.
— Como assim?
— Quero dizer que vou nomeá-lo comandante dos exércitos de Khoraja — declarou Yasmela.
Ele parou com o copo nos lábios e sorriu. Havia uma nova luz em seus olhos.
— Comandante? Crom! Mas o que seus nobres perfumados vão dizer?
— Eles me obedecerão! — Ela bateu palmas para chamar um escravo, que entrou e lhe fez uma
reverência. - Chame o conde Thespides à minha presença imediatamente, e também o chanceler Taurus,
lorde Amalric e Agha Shupras.
— Yasmela esperou o escravo sair e voltou-se para Conan, que agora devorava a comida trazida por
Vateesa.
— Coloco minha confiança em Mitra. Você já participou de muitas guerras?
— Eu nasci no meio de uma guerra — Conan respondeu, arrancando um pedaço de carne do osso com
seus dentes fortes. — O primeiro som a soprar nos meus ouvidos foi aquele das espadas, seguido dos
gritos dos feridos. Lutei em brigas de sangue, guerras de tribo e campanhas imperiais.
— Mas você sabe conduzir homens e organizar linhas de batalha?
— Bem, posso tentar — replicou ele, imperturbável. — Isso não passa de uma luta de espadachins em
grande escala. Você prepara o golpe e ataca. Aí, ou a cabeça do adversário rola ou então é a sua.
O escravo entrou novamente, anunciando a chegada dos convocados. Yasmela saiu para a câmara
externa e fechou atrás de si as cortinas de veludo. Os nobres a cumprimentaram com uma reverência,
evidentemente surpresos por terem sido chamados àquela hora.
— Chamei-os para lhes comunicar minha decisão — disse Yasmela. — O reino está em perigo...
— Certamente, minha princesa — interrompeu o conde Thespides. Era um homem alto, de cabelos
negros cacheados. Com uma das mãos alvas alisava o bigode pontudo e, com a outra, segurava um chapéu
adornado com pena escarlate, presa por uma fivela dourada. Seus sapatos bicudos eram de cetim, e o
traje, de veludo, bordado em ouro. Tinha os modos um tanto afetados, mas os músculos sob as sedas eram
vigorosos. — Seria bom oferecer mais ouro a Ophir para a libertação de seu irmão.
— Discordo totalmente — opinou Taurus, o chanceler, um homem mais velho, vestido em um robe de
arminho franjado, com o rosto marcado pelas preocupações de muitos anos de serviço. — O que
oferecemos já irá empobrecer o reino. Se oferecermos mais, só estaremos alimentando sua ganância.
Minha princesa, digo o que já disse antes: Ophir permanecerá em seu lugar enquanto não decidirmos ir
de encontro à horda invasora. Se perdermos, ele entregará o rei Khossus a Koth; se ganharmos, sem
dúvida ele devolverá sua majestade a nós em troca do resgate.
— E , enquanto isso — disse Amalric —, os soldados desertam diariamente e os mercenários estão
inquietos para saber por que demoramos tanto a agir. — Ele era um nemédio, homem grande com
cabeleira loira, leonina. — Precisamos nos mover depressa.
— Amanhã, marcharemos para o sul — respondeu Yasmela. — E este é o homem que irá liderá-los!
Dramaticamente, ela puxou as cortinas e apontou o cimério. Talvez não tenha sido um momento de
todo feliz para a apresentação. Conan estava esticado em sua cadeira, com os pés apoiados na mesa de
ébano, ocupado em limpar com os dentes um osso que segurava firmemente em ambas as mãos. Ele
ergueu os olhos para os nobres surpresos, sorriu para Amalric e continuou mastigando com indisfarçado
prazer.
— Que Mitra nos proteja! — explodiu Amalric. — Este é o cimério Conan, o mais turbulento de todos
os meus homens! Eu já o teria enforcado há muito tempo não fosse o melhor espadaehim que já vestiu
uma armadura...
— Sua alteza gosta de brincar! — gritou Thespides, contorcendo as feições aristocráticas. — Este
homem é um selvagem, um sujeito sem cultura ou berço! E um insulto pedir que cavalheiros sirvam sob
seu comando! Eu...
— Conde Thespides — interrompeu Yasmela —, minha luva se esconde em seu cinturão. Por favor,
entregue-a a mim e depois vá.
— O quê? — ele gritou, surpreso. — Ir para onde?
— Para Koth ou para o inferno de Hades! — respondeu ela. — Se não me servir conforme desejo, não
me servirá de maneira alguma.
— Está me julgando mal, princesa — disse ele, reverente, magoado — Eu não a abandonaria. Por seu
bem, concordo até mesmo em colocar minha espada à disposição desse selvagem.
— E você, meu lorde Amalric?
Amalric resmungou baixinho, depois sorriu. Sendo um soldado, nenhuma mudança repentina, por mais
ultrajante que fosse, o surpreenderia demais.
— Servirei sob o comando dele. Uma vida curta e feliz, digo eu. E com Conan, o cortador de
pescoços, no comando, é bem provável que a vida seja mesmo feliz e curta. Mitra! Eu como meu chapéu
se esse sujeito alguma vez já comandou mais do que um bando de criminosos. Meu chapéu, minha
armadura e tudo o mais!
— E você, Shupras?
Ele deu de ombros, resignado. Era um homem típico da raça que se desenvolvera ao longo da fronteira
meridional de Koth — alto e magro, mais esguio que seus parentes puro-sangue do deserto.
— Ishtar olhe por nós, princesa. — O fatalismo de seus ancestrais falou por ele.
— Esperem aqui — ordenou ela. Enquanto Thespides apertava, inconformado, seu chapéu de veludo,
e Taurus resmungava baixo, e Amalric andava de um lado para outro, Yasmela desapareceu novamente
pelas cortinas e chamou os escravos num bater de palmas.
A seu comando, eles trouxeram uma armadura nova para substituir a que Conan usava. Quando
Yasmela tornou a abrir as cortinas, um bárbaro em aço reluzente apareceu diante da platéia. Com o
uniforme de gala, o visor levantado e as plumas negras sobre o elmo, havia algo tão impressionante em
sua postura que até Thespides, embora contrariado, tinha que admitir.
— Por Mitra — comentou Amalric. — Nunca esperei um dia vê-lo vestido assim, mas você não
envergonha o traje. Conan, posso lhe afirmar que já vi reis que vestiam a armadura com menos realeza do
que você.
Conan ficou em silêncio. Vaga sombra atravessou sua mente, como uma profecia. Em anos por vir, ele
iria se lembrar das palavras de Amalric, naquele outro tempo que transformaria o sonho em realidade.
III
Na neblina fria da manhã, as ruas de Khoraja apinhavam-se de gente observando os soldados que
saíam pelo portão sul. O exército, afinal, punha-se em movimento. Lá estavam os cavaleiros reluzentes
em ricas armaduras de aço, com plumas coloridas esvoaçando sobre os capacetes. Os cavalos, equipados
com selas de couro e seda e estribos de ouro, agitavam o pescoço imponente enquanto acertavam o
passo. A luz ainda tênue do sol da manhã cintilava em pontas de lanças que se erguiam como uma floresta
sobre o batalhão, com as flâmulas agitadas à brisa. Cada cavaleiro levava consigo um presente simbólico
de uma mulher, uma luva, um lenço ou uma rosa, preso ao elmo ou ao cinto. Aquela era a cavalaria de
Khoraja, 500 homens fortes conduzidos pelo conde Thespides, que, segundo os rumores, aspirava à mão
da própria Yasmela.
Eram seguidos pela cavalaria leve, composta de corcéis garbosos. Os cavaleiros representavam
tipicamente os homens das colinas, magros e de rosto estreito; usavam capacetes em ponta e uma
armadura sob o kaftan esvoaçante. Sua principal arma era o terrível arco shemita, capaz de atirar uma
seta a uma distância de 500 passos. Havia 5 mil desses homens, com Shupras à frente, sério sob o elmo
espiralado.
Logo atrás, vinham os lanceiros de Khoraja, sempre comparativamente poucos em qualquer Estado
hiboriano, onde os homens consideravam a cavalaria a única divisão nobre do exército. Estes, como os
cavaleiros, eram homens de antigo sangue khotiano, filhos de famílias arruinadas, jovens sem dinheiro
que não tinham condições de arcar com as despesas de um cavalo e uma armadura de aço; eram em
número de 500.
Os mercenários vinham atrás, cerca de mil homens a cavalo, 2 mil lanceiros. Os animais altos
pareciam tão rudes e selvagens quanto seus cavaleiros. Havia um aspecto sombrio de profissionalismo
nesses matadores profissionais, veteranos de campanhas sangrentas. Vestidos em armadura da cabeça aos
pés, usavam elmos sem visor sobre o barrete de malha. Seus escudos não tinham adornos, as longas
lanças não portavam flâmulas. De suas selas pendiam achas ou clavas de aço, e cada homem trazia junto
ao corpo uma espada larga. Os lanceiros estavam armados mais ou menos da mesma maneira, embora
levassem piques em vez das lanças de cavalaria. Havia homens de muitas raças e muitos crimes:
hiperboreanos altos e magros, com ossos grandes, fala lenta e natureza violenta; gunderlandeses loiros
das colinas do noroeste; arrogantes coríntios renegados; zíngaros morenos de bigodes negros e
temperamento explosivo; aquilonianos do oeste distante. Mas todos, exceto os zíngaros, eram hiborianos.
Fechando o cortejo, vinha um camelo ricamente adornado, puxado por um cavaleiro em um grande
corcel, e cercado por um grupo de lanceiros da tropa doméstica real. Sobre o camelo, protegida pelo
dossel de seda do assento, vinha a figura esguia e miúda, vestida em seda, cuja presença fez a população,
sempre respeitosa com a realeza, tirar os chapéus de couro e aclamar vivamente.
Conan, o cimério, inquieto em sua armadura, olhou para o camelo com ar de desaprovação e procurou
Amalric, que cavalgava a seu lado, reluzente em uma armadura adornada de entalhes de ouro e um elmo
com a crina de cavalo esvoaçante.
— A princesa quis vir conosco. Ela é ágil, mas muito delicada para este trabalho. De qualquer forma,
ela terá que dispensar essas roupas de seda.
Amalric escondeu um sorriso ao mexer no bigode loiro. Sem dúvida, Conan imaginava que Yasmela
pretendia pegar em armas e tomar parte da luta, como as mulheres bárbaras freqüentemente faziam.
— As mulheres dos hiborianos não lutam como suas mulheres cimérias, Conan — disse ele. —
Yasmela vai conosco para assistir à batalha. No entanto — ele se moveu na sela e baixou a voz —, cá
entre nós, tenho a impressão de que a princesa não teve coragem de ficar aqui. Ela teme alguma coisa...
— Uma revolta? Talvez seja melhor enforcarmos alguns cidadãos antes de irmos...
— Não. Uma de suas damas de companhia falou sobre algo que entrou no palácio à noite e aterrorizou
Yasmela. Não duvido de que seja alguma das feitiçarias de Natohk. Conan, nós lutamos contra mais do
que carne e osso!
— Bem — grunhiu o bárbaro —, é melhor irmos ao encontro do inimigo do que esperarmos por ele.
Ele fitou a longa linha de homens, segurou as rédeas de seu cavalo e pronunciou, por hábito, a frase
dos mercenários em campanha:
— Ao ataque, companheiros! Em marcha!
Atrás do longo cortejo, fecharam-se as portas maciças de Khoraja. Cabeças ansiosas espiavam por
sobre as muralhas. Os cidadãos sabiam ser os espectadores de uma partida para vida ou para a morte. Se
o exército fosse vencido, o futuro de Khoraja seria escrito em sangue. Nas hordas que subiam do sul
selvagem, misericórdia era uma qualidade desconhecida.
As colunas marcharam o dia inteiro através de planícies verdes cortadas por pequenos rios. O terreno
começava a se elevar lentamente. À frente deles, erguia-se uma cadeia de colinas baixas, seguindo em
uma faixa ininterrupta de leste a oeste.
Acamparam naquela noite nas encostas setentrionais dessas colinas, e homens de nariz curvo e olhar
penetrante das tribos das colinas vieram se agachar junto às fogueiras. Eles narravam as novas, vindas do
misterioso deserto. Em suas histórias, o nome de Natohk viajava como serpente rastejante. A víbora fez
com que os demônios do ar trouxessem trovão, vento e neblina, e determinou aos espíritos malévolos do
mundo inferior que sacudissem a terra com um estrondo terrível. Do ar, Natohk soprou o fogo que
consumiu os portões das cidades muradas e queimou homens vestidos de armadura até não restar deles
nada além de ossos calcinados. Seus guerreiros cobriram em grande número o deserto. Ele possuía 5 mil
tropas estígias em carros de guerra, sob as ordens do príncipe rebelde Kutamun.
Conan escutava, imperturbável. A guerra era sua profissão. A vida se resumia a uma batalha contínua,
ou a uma série de batalhas; desde que ele nascera, a morte vinha sendo a companheira constante. Ela
caminhava, horrenda, a seu lado; parava às suas costas junto às mesas de jogo; seus dedos ossudos
balançavam os copos de vinho. Rondava-o como uma sombra encapuzada e monstruosa quando ele se
deitava para dormir. Ele se importava com aquela presença tanto quanto um rei com a existência de seu
copeiro. Algum dia, a mão ossuda iria se fechar em torno dele; nada mais do que isso. Era suficiente para
Conan viver o presente.
Porém, outros se sentiam bem menos indiferentes ao medo do que ele. Conan retornava da linha de
sentinelas quando uma figura esguia e envolta em um manto o deteve, estendendo a mão à sua frente.
— Princesa! Deveria estar em sua tenda.
— Não consegui dormir. — Os olhos escuros de Yasmela brilhavam assustados na noite. — Conan,
eu estou com medo!
— Você teme algum dos homens do exército? — perguntou ele, levando a mão à espada.
— Não, nenhum homem — respondeu ela, estremecendo. — Conan, há alguma coisa de que você
tenha medo?
Ele refletiu um pouco, passando a mão no queixo.
— Sim — admitiu, por fim. — A maldição dos deuses.
Ela estremeceu de novo.
— Estou amaldiçoada. Um demônio dos abismos colocou sua marca em mim. Noite após noite, ele
aparece nas sombras, sussurrando segredos horríveis. Ele vai me arrastar para ser sua rainha no inferno.
Não tenho coragem de dormir! Ele virá até mim na tenda, da mesma forma como veio no palácio! Conan,
você é forte. Fique comigo! Estou com medo!
Ela não era mais uma princesa, apenas uma menina cheia de pavor. Deixara seu orgulho
despudoradamente de lado. O terror a fizera procurar quem lhe parecera mais forte. A potência quase
animal que antes repelira, agora a atraía.
Em resposta, Conan tirou o manto escarlate e colocou-o nas costas da princesa com alguma rispidez,
como se fosse impossível para ele protagonizar qualquer gesto de ternura. Sua mão de ferro repousou por
alguns instantes sobre o ombro de Yasmela, que estremeceu de novo, não de medo. Assemelhava-se a um
choque elétrico: uma onda de vitalidade animal percorreu seu corpo ao mero toque do bárbaro, como se
parte de sua força abundante tivesse sido transmitida a ela.
— Deite aqui. — Ele indicou um espaço livre ao lado de uma pequena fogueira.
Não via incongruência em fazer a princesa dormir no chão ao lado de um fogaréu de acampamento,
enrolada no manto de um guerreiro. Ela obedeceu sem discutir.
Conan sentou-se em uma pedra a seu lado, com a espada sobre os joelhos. A luz do fogo refletia em
sua armadura, e ele parecia uma imagem de aço — um poder dinâmico, temporariamente sossegado; não
adormecido, mas imóvel por um instante, à espera de um sinal qualquer para entrar de novo em ação. O
brilho das chamas brincava em seu rosto, fazendo-o parecer entalhado em uma substância misteriosa,
dura como o aço, contudo. Mesmo que estivesse parado, seus olhos queimavam com uma intensidade
viva. Ele não era simplesmente um selvagem; era parte dos elementos indomáveis da natureza. Em suas
veias, corria o sangue de uma matilha de lobos; em seu cérebro, escondiam-se as profundezas meditativas
das noites do norte; seu coração pulsava com o fogo de florestas em chamas.
Assim, meio pensativa, meio sonhadora, Yasmela adormeceu, envolta em uma sensação deliciosa de
segurança. De alguma forma, sabia que nenhuma sombra de olhos de fogo se curvaria sobre ela na
escuridão enquanto aquele bárbaro sombrio de terras distantes a velasse. No entanto, uma vez mais, ela
acordou trêmula de medo, não em razão de qualquer coisa que houvesse visto.
Foi um murmúrio baixo de vozes o que a despertou. Ao abrir olhos, viu que o fogo estava se
apagando. Um início de alvorada insinuava-se no ar. Percebeu vagamente que Conan ainda se encontrava
sentado a seu lado; notou o brilho azulado de sua longa espada. Junto a ele, havia outro homem agachado.
Sonolenta, Yasmela distinguiu um nariz curvo, dois olhos como contas brilhantes e um turbante branco. O
homem falava rapidamente em um dialeto shemita que ela teve dificuldade para compreender.
— Que Bel seque meu braço se eu não estiver falando a verdade! Por Derketo, Conan, sou um
príncipe dos mentirosos, mas não minto para um velho companheiro. Juro pelos dias em que fomos
ladrões juntos na terra de Zamora, antes de você usar armaduras! Eu vi Natohk; com os outros, ajoelheime
diante dele enquanto pronunciava encantamentos para Set. Mas não afundei meu nariz na areia como
os demais. Sou um ladrão de Shumir e minha vista é mais aguçada que a de uma doninha. Espiei com
cuidado e vi o véu esvoaçando ao vento, eu olhava quando seu rosto se descobriu. Eu vi. Que Bel me
ajude, Conan, mas eu vi! Meu sangue congelou nas veias, meus cabelos se eriçaram. O que eu vi queimou
minha alma como ferro em brasa. Não pude descansar até ter certeza. Viajei até as ruínas de Kuthchemes.
A porta do domo de marfim estava aberta; à entrada, havia uma grande serpente, atravessada por uma
espada. Dentro do domo, vi o corpo de um homem, tão enrolado e distorcido que, a princípio, foi difícil
reconhecê-lo. Era Shevatas, o zamoriano, o único ladrão do mundo que eu reconheceria superior a mim.
O tesouro estava intocado, em pilhas reluzentes ao redor do corpo. E só.
— Não havia ossos... — começou Conan.
— Não havia nada! — interrompeu o shemita, nervoso. — Nada! Apenas um corpo!
O silêncio reinou por um instante e Yasmela agitou-se num horror indefinível, que lentamente subiu
por todo o seu corpo.
— De onde veio Natohk? - ergueu-se o sussurro vibrante do shemita. — Do deserto, em uma noite na
qual o mundo parecia cego e tumultuado por nuvens enlouquecidas, conduzidas em vôo frenético através
de estrelas que estremeciam, e 0 uivo do vento se misturava aos gritos dos espíritos ermos. Vampiros
estavam soltos naquela noite, bruxas viajavam nuas pelo ar e um fogo perverso brincava em torno dele; o
rastro do camelo brilhava nas trevas. Quando Natohk desfez a montaria, diante do templo de Set, perto do
oásis de Aphaka, o animal desapareceu na noite. Eu conversei com homens de tribos do deserto e eles me
juraram que o bicho, de repente, estendeu asas gigantescas e sumiu em direção às nuvens, deixando uma
trilha de fogo atrás de si. Nenhum homem tornou a ver esse camelo desde aquela noite, mas uma forma
negra com aspecto humano arrasta-se para dentro da tenda de Natohk e fala de um modo estranho com ele
na escuridão, antes do amanhecer. Estou lhe dizendo, Conan, Natohk é... olhe, vou lhe mostrar uma
imagem do que presenciei naquele dia em Shushan, quando o vento fez voar seu véu!
Yasmela viu um brilho dourado na mão do shemita enquanto os homens se inclinavam sobre alguma
coisa. Ouviu Conan grunhir. E , de repente, tudo ficou escuro à sua volta. Pela primeira vez na vida, a
princesa Yasmela desmaiou.
IV
O dia era ainda uma sugestão de claridade ao leste quando o exército se pôs em marcha outra vez.
Homens das tribos do deserto haviam corrido até o acampamento, com os cavalos ofegantes da longa
viagem, para relatar que a horda invasora acampara no Poço de Altaku. Então, os soldados se apressaram
pelas colinas, sem aguardar os grupos de mantimentos e cargas. Yasmela foi com eles, assustada. O
horror anônimo assumia uma forma ainda mais terrível desde que ela reconhecera a moeda na mão do
shemita na noite anterior — uma daquelas secretamente cunhadas pelo antigo culto zugita, que traziam o
rosto de um homem morto havia 3 mil anos.
O caminho serpenteava entre rochedos irregulares e penhascos sobre vales estreitos. Aqui e ali
apareciam aldeias, aglomerados de cabanas de pedra revestidas de barro. Os homens do deserto
amontoavam-se para se unir a seus compatriotas e, assim, antes do término da travessia das colinas, o
exército já havia inchado em cerca de 3 mil arqueiros.
Abruptamente, chegaram ao final das colinas e respiraram fundo diante da vasta imensidão que se
estendia para o sul. No lado meridional, as colinas terminavam de forma repentina, marcando uma
distinta divisão geográfica entre as terras altas kothianas e o deserto. As colinas eram a borda das terras
altas, formando uma parede quase ininterrupta. Naquele ponto, áridas e desoladas, eram habitadas apenas
pelo clã zaheemi, cuja tarefa consistia em guardar a estrada pela qual corriam as caravanas. Adiante das
colinas, o deserto estendia-se vazio, poeirento, sem vida. No entanto, para além de seu horizonte,
estavam o Poço de Altaku e as hordas de Natohk.
O exército desceu através do Passo de Shamla, pelo qual fluía a riqueza do norte e do sul e por onde
haviam marchado as tropas de Koth, Khoraja, Shem, Turan e Stygia. Ali, a muralha de colinas era
rompida. Promontórios invadiam o deserto, formando vales secos, todos eles — exceto um — fechados
na extremidade norte por penhascos intransponíveis. Esta exceção era a Passagem. Parecia-se com uma
grande mão estendida desde as colinas; dois dedos separados compunham um vale em forma de leque. Os
dedos eram representados por uma larga crista de encostas íngremes. O vale se inclinava para cima
conforme se estreitava, até terminar em um platô ladeado por gargantas de pedra. Ali, havia um poço e
um aglomerado de torres de pedra, ocupadas pelos zaheemis.
Conan estacionou nesse local, puxando as rédeas do cavalo. Thespides aproximou-se dele.
— Por que parou?
— Vamos esperá-los aqui — respondeu Conan.
— Seria mais cavalheiresco ir ao encontro deles — revidou o conde.
— Eles nos superam em número. Além disso, não há água lá. Vamos acampar no platô...
— Meus cavaleiros e eu acamparemos no vale — interrompeu Thespides, irritado. — Somos a
vanguarda e nós, pelo menos, não temos medo de um bando de esfomeados do deserto.
Conan deu de ombros e o nobre se afastou, furioso. Amalric parou e observou a tropa reluzente de
Thespides descer a encosta até o vale.
— Idiotas! Seus cantis logo estarão vazios e eles terão que subir novamente até o poço para dar água
aos cavalos.
— Deixe-os — replicou Conan. — Eles sentem dificuldade em aceitar minhas ordens. Diga aos
homens para descansarem. Marchamos muito e depressa. Mande-os dar água aos cavalos e, depois,
comer alguma coisa.
Não havia necessidade de posicionar vigias. O deserto se estendia, amplo, diante dos olhos, embora a
vista, no momento, estivesse um pouco prejudicada pelas nuvens baixas que se aglomeravam em massas
brancas junto ao horizonte sul. A monotonia só era quebrada por um grupo de ruínas de pedra, a alguns
quilômetros de distância dentro do deserto, que se acreditava pertencer a um antigo templo estígio. Conan
fez os arqueiros descerem de seus cavalos e os colocou ao longo da borda da encosta, junto com os
homens das tribos. Os mercenários e os lanceiros de Khoraja ficaram no platô, perto do poço. Mais para
trás, no ângulo onde a estrada das colinas desembocava no platô, encontrava-se a tenda de Yasmela.
Sem nenhum inimigo à vista, os guerreiros relaxaram. Tiraram os elmos, soltaram os cintos, largaram
as lanças. Piadas rudes enchiam o ar enquanto eles mastigavam carne e se afogavam em canecas de
cerveja. Ao longo das encostas, os homens das colinas saboreavam tâmaras e azeitonas. Amalric
caminhou até uma pedra onde Conan se sentava.
— Conan, você ouviu o que os homens do deserto dizem sobre Natohk? Eles dizem... por Mitra, é
muita loucura até para repetir. O que você acha?
— As sementes às vezes dormem no chão durante séculos sem apodrecer — respondeu Conan. — Mas
claro que Natohk é um homem.
— Eu não estou tão certo disso — resmungou Amalric. — De qualquer forma, você organizou as
tropas tão bem quanto um general experiente teria feito. Sem dúvida, os demônios de Natohk não podem
cair sobre nós despercebidos. Mitra, que neblina!
— E eu pensava que eram nuvens — comentou Conan. — Veja como ela se espalha!
O que antes se parecia com nuvens era em verdade uma densa névoa movendo-se para o norte tal qual
imenso oceano instável, rapidamente escondendo o deserto de vista. Ela logo engolfou as ruínas estígias
e continuou avançando. O exército observava, surpreso. Era algo como nunca tinham visto, estranho e
inexplicável.
— Não adiante colocar vigias — disse Amalric, desgostoso. — Eles não conseguiriam ver nada. Logo
toda a passagem e as colinas vão estar cobertas...
Conan, que fitava a neblina com um nervosismo crescente, inclinou-se de repente e encostou o ouvido
no chão. Então ergueu-se apressado, praguejando.
— Cavalos e carros, milhares deles! O chão vibra com sua marcha! Ei, vocês aí! — sua voz trovejou
pelo vale, pondo em alerta todos os homens. — A seus postos!
Ao ouvir a ordem, os guerreiros colocaram-se em posição, vestindo rapidamente os elmos e pegando
armas. Nesse momento, a neblina se desfez, como se já não fosse mais necessária. Ela não se levantou
lentamente até sumir, como o faria uma formação natural; em vez disso, simplesmente desapareceu, como
chama apagada. Em um momento, o deserto inteiro estava escondido pela névoa espessa; no momento
seguinte, o sol brilhava num céu sem nuvens sobre o deserto — não mais vazio, mas repleto de todo um
aparato vivo de guerra. Um grande grito sacudiu as colinas.
A primeira vista, os guerreiros pareciam estar olhando para um mar reluzente de bronze e ouro, onde
pontas de aço brilhavam como uma miríade de estrelas. Com a elevação da neblina, os invasores se
tornaram imóveis, como se petrificados, em longas linhas organizadas, reluzentes sob o sol.
Na frente, havia uma longa fila de carros puxados por grandes cavalos estígios com plumas na cabeça,
resfolegando e empinando, agitados. Os guerreiros nos carros eram homens altos; seus elmos de bronze
vinham adornados com o símbolo de uma lua crescente, que dava suporte a uma bola dourada. Havia
pesados arcos em suas mãos. Não eram arqueiros comuns, mas nobres do sul, criados para a guerra e
para a caça, acostumados a derrubar leões com suas flechas.
Atrás deles, havia um grupo variado de lutadores rústicos sobre cavalos semi-selvagens. Eram
guerreiros de Kush, o primeiro dos grandes reinos negros dos campos ao sul de Stygia, cor de ébano,
esguios e ágeis, cavalgando nus, sem sela ou rédeas.
Depois destes, vinha uma horda que parecia cobrir todo o deserto. Milhares sobre milhares de filhos
guerreiros de Shem: tropas de cavaleiros com coletes de escamas e elmos cilíndricos, os asshuri de
Nippr, Shumir e Eruk e suas cidades irmãs; multidões de clãs nômades vestidos de branco.
As fileiras começavam a se mover lentamente. Os carros saíam para o lado enquanto o grupo principal
avançava, hesitante. Os cavaleiros no vale haviam apeado e o conde Thespides galopou até o alto do
platô onde Conan se encontrava. Falou rapidamente, sem deixar a sela.
— A elevação da neblina os confundiu! Agora é a hora de atacar! Os kushitas não têm arcos e apenas
camuflam o avanço geral. Um ataque de meus cavaleiros irá fazê-los recuar para o meio das fileiras
shemitas, desfazendo a formação. Siga-me! Vamos ganhar esta batalha com um golpe só!
Conan sacudiu a cabeça.
— Se estivéssemos lutando contra um inimigo natural, eu concordaria. Mas esta confusão é mais
fingida do que real, como se quisessem nos atrair para o ataque. Tenho receio de uma armadilha.
— Então você se recusa a atacar? — gritou Thespides, e a raiva lhe tingia o rosto de vermelho.
— Seja sensato — argumentou Conan. — Temos a vantagem da posição...
Praguejando furiosamente, Thespides virou o cavalo e galopou para o vale onde seus cavaleiros
aguardavam, impacientes.
Amalric sacudiu a cabeça.
— Você não devia tê-lo deixado voltar, Conan. Eu... ei, olhe ali!
Conan levantou-se com um xingamento. Thespides cavalgava entre seus homens. Podiam ouvir apenas
vagamente sua voz excitada, mas o gesto em direção à horda que se aproximava não deixava margem
para dúvidas. Em mais um instante, 500 lanças apontaram para a frente e a tropa em armaduras de aço
avançou vale abaixo.
Um jovem pajem deixou correndo a tenda de Yasmela, gritando para Conan com voz aguda e ansiosa:
— Meu senhor, a princesa pergunta por que não segue e apóia o conde Thespides!
— Porque não sou tão tolo quanto ele — resmungou Conan, que voltou a se sentar em sua pedra e
começou a morder um enorme pedaço de carne.
— Você ficou mais sensato com a autoridade — comentou Amalric. — Loucuras como essa sempre
foram sua alegria particular.
— Sim, quando eu só tinha a minha própria vida para levar em conta — respondeu Conan. — Agora...
mas o que é isso?
A horda havia parado. Da ala mais extrema avançou um carro, o condutor nu chicoteando o cavalo
como um louco; o outro ocupante era um homem alto cujo robe esvoaçava fantasmagoricamente ao vento.
Ele tinha nos braços uma grande jarra de ouro, de onde despejava uma substância que cintilava ao sol. O
carro percorreu toda a frente da horda do deserto e, atrás de suas rodas, foi deixando uma longa e fina
linha de um pó brilhante sobre a areia, como a trilha fosforescente de uma serpente.
— Aquele é Natohk! — exclamou Amalric. — Que pó infernal ele está semeando?
Os cavaleiros de Thespides não haviam alterado sua velocidade de ataque. Mais uns 50 passos e
iriam colidir com as fileiras irregulares kushitas, que permaneciam imóveis, as lanças erguidas. Os
primeiros cavaleiros atingiram a linha fina do pó que cintilava. Não deram atenção à ameaça insidiosa.
Mas, quando os cascos dos cavalos tocaram a linha, foi como quando um pedaço de aço bate em uma
pedra — com resultados bem mais terríveis. Uma explosão assustadora agitou o deserto, que pareceu
dividir-se, ao longo da linha semeada, a partir de uma medonha muralha de chamas brancas.
Nesse instante, a primeira linha de cavaleiros viu-se envolvida em fogo, cavalos e homens
consumiram-se no clarão como insetos ao calor das chamas. No instante seguinte, as fileiras de trás
amontoaram-se sobre os corpos queimados. Impossibilitadas de reduzir a velocidade suficientemente
depressa, fileiras e mais fileiras colidiram e foram destruídas. Com uma rapidez estonteante, o ataque
havia se transformado em carnificina: homens de armadura morriam entre cavalos destroçados.
De repente, quando a horda invasora organizou-se em linhas ordenadas, a miragem da confusão se
desfez. Os selvagens kushitas correram para os corpos carbonizados, enfiando suas lanças nos feridos,
arrebentando os elmos dos cavaleiros com pedras e martelos de aço. Tudo acabou tão depressa que os
vigias nas colinas nem tiveram tempo de se mover, totalmente atordoados; e, novamente, a horda
começou a avançar, dividindo-se para se desviar dos corpos amontoados sobre a areia. Das colinas,
ouviu-se um grito:
— Não estamos lutando contra homens, mas contra demônios!
De ambos os lados da encosta, os homens da colina hesitavam. Um deles correu para o platô,
ofegante.
— Vamos fugir! Vamos fugir! — gritou. — Quem pode lutar contra a magia de Natohk?
Conan levantou-se da pedra, resmungou e golpeou o homem com o osso da carne que tinha nas mãos,
fazendo-o ir ao chão com sangue escorrendo pelo nariz. Em seguida, com um brilho assustador nos olhos,
puxou a espada.
— De volta a seus postos! — ordenou. — Se mais alguém der um passo para trás, eu lhe cortarei a
cabeça! Lutem, maldição!
O tumulto terminou tão rapidamente quanto havia começado. A personalidade vigorosa de Conan foi
como uma ducha de água fria sobre a onda de pânico que tomara os homens.
— A seus lugares — orientou ele, depressa. — E permaneçam neles! Nem homem nem demônio vai
subir o Passo de Shamla hoje!
No ponto em que a borda do platô se encontrava com a encosta do vale, os mercenários apertaram os
cinturões e ergueram as lanças. Atrás deles, os lanceiros esperavam sobre seus cavalos, ao lado dos
homens de Khoraja, que se colocaram em posição de reserva. Para Yasmela, que da porta da tenda
observava tudo pálida e sem voz, seu exército parecia um deplorável punhado de pessoas se comparado
à monstruosa horda do deserto.
Conan postou-se entre os lanceiros. Sabia que os invasores não tentariam um ataque de carros de
guerra pelo meio da Passagem, mas soltou uma exclamação de surpresa ao ver os cavaleiros inimigos
desmontando. Aqueles homens rudes não traziam carros de mantimentos. Cantis e bolsas pendiam da sela
de seus cavalos. Conan os viu beberem o que lhes restava de água e jogarem fora os cantis.
— A morte não lhes dá medo mais — murmurou, vendo que compunham de pé suas linhas. — Eu
preferiria que eles atacassem montados; cavalos feridos não obedecem e arruinam as formações.
A horda havia delineado uma enorme cunha, com os estígios na ponta, os asshuri no centro e os
nômades nas laterais. Eles avançavam em um grupo compacto, com os escudos levantados, enquanto mais
atrás, em um carro imóvel, um homem alto erguia os braços cobertos por mangas largas e dirigia uma
invocação sombria aos céus.
Quando a horda chegou à entrada do amplo vale, os homens das colinas foram perdendo suas armas e,
apesar da formação de defesa, passaram a ser mortos às dezenas. Os estígios haviam largado os arcos e,
inclinando para a frente as cabeças protegidas por elmos, fitavam com os olhos negros por sobre a borda
do escudo. Avançavam como uma vaga que era impossível evitar, pisoteando os companheiros caídos.
Mas os shemitas retomaram o fogo e as nuvens de flechas escureceram o ar. Conan observava a
confusão de lanças e arcos, imaginando que novo horror o feiticeiro iria evocar. De alguma forma, sentia
que Natohk, como todos os de seu tipo, mostrava-se mais terrível na defesa do que no ataque; tomar a
ofensiva contra ele convidava ao desastre. Mas certamente era a magia o que impelia aquela horda às
raias da morte.
Conan olhou com desgosto para a carnificina que seguia o avanço das fileiras. As bordas da cunha
invasora pareciam estar se diluindo e o vale já surgia salpicado de cadáveres. No entanto, os
sobreviventes prosseguiam como loucos, indiferentes ao fim. Os homens nas colinas já não davam conta
do número imenso de arqueiros inimigos e procuravam desesperadamente abrigo. Tomados de pânico
com o avanço infatigável dos invasores, puxavam seus arcos insanamente, com os olhos febris de lobos
encurralados.
Quando as hordas se aproximaram da garganta estreita do Passo, rochas atiradas das colinas
esmagaram dezenas de homens, mas nem sequer fizeram o ataque vacilar.
Os homens de Conan se preparavam para o confronto inevitável. Em sua formação compacta e com
armaduras de qualidade superior, não sofriam com as flechas. Mas o que Conan temia era o impacto do
ataque quando a enorme cunha colidisse em suas fileiras escassas. E percebia agora que não havia como
interromper a matança. Ele segurou o ombro de um zaheemi que se encontrava ao lado.
— Existe alguma maneira de homens montados descerem até o vale por trás daquele cume a oeste?
— Sim, uma trilha íngreme, perigosa, secreta e eternamente protegida. Mas...
Conan o arrastou consigo até o local onde Amalric se postava sobre seu grande cavalo de guerra.
— Amalric! — chamou. — Siga este homem! Ele vai conduzir você até o outro lado do vale. Desça
até lá, circunde os rochedos e ataque a horda por trás. Não fale nada; aja depressa! Sei que é loucura,
mas estamos condenados de qualquer forma; causaremos tanto prejuízo quanto pudermos antes de morrer!
Apresse-se!
Amalric afastou-se e, poucos momentos depois, seus lanceiros seguiam o guia pelo emaranhado de
gargantas que conduziam para fora do platô. Conan voltou ao campo de combate no momento em que os
soldados de Shupras, enlouquecidos com a derrota certa, atiravam suas lanças para o vale como uma
chuva desesperada. Homens morriam feito moscas no vale e nas encostas — e com um bramido, numa
onda que se levantava, irresistível, os estígios bateram de frente com os mercenários.
As fileiras iam e vinham no furacão de aço e músculos. Eram nobres guerreiros contra soldados
profissionais. Escudos se chocavam com escudos e, entre eles, lanças investiam e faziam jorrar sangue.
Conan reconheceu o físico poderoso do príncipe Kutamun do outro lado do mar de espadas, mas não
tinha como chegar até ele. A massa compacta de homens lutava corpo a corpo. Atrás dos estígios, os
asshuri aproximavam-se aos gritos.
Nos dois lados das colinas, nômades subiam os rochedos para enfrentar seus parentes das montanhas.
Por todas as encostas, o combate se desenvolvia com uma ferocidade cega e irracional. Enlouquecidos
pelo fanatismo e pelas antigas rixas, os homens das tribos atacavam, matavam e morriam. Com os
cabelos revoltos soltos ao vento, os kushitas nus entravam uivando na briga.
Os olhos quase cegos de Conan pareciam fitar um oceano agitado de aço que fervilhava em
redemoinhos, enchendo o vale de ponta a ponta. A luta vivia um impasse sangrento. Os homens das
colinas mantinham o controle das cristas e os mercenários, firmes em seus postos, fechavam a passagem.
O posicionamento e as armaduras superiores contrabalanceavam por algum tempo a vantagem numérica
dos invasores. Mas aquilo não poderia durar muito. Ondas e ondas de rostos enfurecidos e lanças
reluzentes de asshuris subiam a encosta, preenchendo os vazios nas fileiras estígias.
Conan procurou ver se os homens de Amalric apareciam por trás da encosta oeste, mas eles não
chegavam, e seus lanceiros já precisavam recuar sob o impacto dos choques. Naquela altura, Conan
abandonou toda esperança de vitória e de vida.
Gritando um comando para seus capitães atônitos, saiu de sua posição e correu pelo platô até os
reservas de Khoraja, que esperavam, trêmulos de ansiedade. Nem olhou para a tenda de Yasmela. Havia
se esquecido da princesa; seu único pensamento era o instinto selvagem de matar antes de morrer.
— Hoje vocês vão se tornar cavaleiros! — disse, rindo ferozmente e apontando com a espada os
cavalos dos homens das colinas, agrupados ali perto. — Montem e sigam-me até o inferno!
Os animais da colina protestaram ferozmente sob o barulho desconhecido das armaduras kothianas, e a
risada tempestuosa de Conan ergueu-se sobre o alarido enquanto ele os conduzia para o ponto onde a
crista leste se afastava do platô. Quinhentos homens de infantaria — nobres empobrecidos, filhos mais
novos, ovelhas negras — sobre cavalos shemitas semi-selvagens, atacando um exército por uma encosta
onde nenhuma cavalaria jamais sonhara atacar!
Atravessaram a boca sangrenta da Passagem, percorreram a montanha coberta de cadáveres e
desceram a encosta íngreme, onde uma dezena de homens escorregaram e rolaram sob os cascos de seus
camaradas. Abaixo deles, guerreiros gritavam e erguiam os braços — e o grupo de Conan caiu sobre eles
como uma avalanche sobre uma floresta de brotos de árvores. Os khorajis colidiram com o tropel,
deixando que se formasse atrás de si um tapete fúnebre.
E então, enquanto a horda se contorcia e se enrolava, os lanceiros de Amalric chegaram ao outro lado
do vale, contornaram a extremidade das colinas do oeste e investiram contra as últimas fileiras inimigas,
abrindo um buraco à sua passagem.
O ataque trouxe consigo toda a atordoante desmoralização de uma surpresa na retaguarda. Julgando-se
cercados por uma força superior e atemorizados com a perspectiva de terem seu caminho para o deserto
barrado, bandos de nômades abandonaram a formação e fugiram, desorganizando as fileiras de seus
companheiros mais persistentes. Estes se desequilibraram e foram pisoteados pelos cavalos. Nas
montanhas, os guerreiros do deserto hesitaram diante da confusão inesperada e os homens das colinas
caíram sobre eles com fúria renovada, expulsando-os pelas encostas.
Atordoada pela surpresa, a horda se dispersou antes de constatar que era atacada por não mais que um
punhado de homens. E , uma vez desfeita, nenhum mágico conseguiria novamente reuni-la com igual
número de guerreiros.
Sobre o mar de cabeças e lanças, os homens de Conan viram os cavaleiros de Amalric avançando
resolutos entre a confusão de gente, entre as achas e clavas que subiam e desciam. E uma louca alegria da
vitória encheu o coração de cada um deles, e tornou seus braços ainda mais poderosos.
Atravessando o mar de sangue cujas ondas escarlates atingiam seus tornozelos, os guerreiros que
fechavam a entrada da Passagem se precipitaram sobre as espessas fileiras à frente. Os estígios não
recuaram, mas, atrás deles, o grupo dos asshuris se diluiu; e, sobre os corpos dos nobres do sul que
lutaram até o último homem, os mercenários irromperam para dividir e destroçar as fileiras que ainda
resistiam. Sobre os rochedos, o velho Shupras jazia com uma flecha no coração; Amalric caíra e
praguejava como um pirata diante da lança enfiada em sua coxa direita. Da infantaria montada de Conan,
apenas cerca de 150 homens permaneciam nas selas.
Mas a horda estava abalada. Nômades e lanceiros fugiam para o acampamento à procura de seus
cavalos, e os homens das colinas desciam em bandos pelas encostas, atacando os fugitivos pelas costas,
cortando a garganta dos feridos.
Naquele caos, uma terrível aparição surgiu de repente diante do cavalo de Conan. Era o príncipe
Kutamun, nu exceto por uma tanga, a armadura entalhada, o elmo de crista amassado, Os membros
manchados de sangue. Com um grito assustador, ele atirou a espada quebrada no rosto de Conan e, de um
salto, agarrou a rédea do cavalo. O cimério desequilibrou-se na sela, atordoado com o golpe, enquanto o
príncipe gigante, com uma força descomunal, puxava a rédea, obrigando o animal a pular e recuar, até
que perdesse o equilíbrio e desabasse sobre a areia ensangüentada e os corpos contorcidos.
Conan pulou da sela quando o cavalo caiu e, com um bramido, Kutamun jogou-se sobre ele. Envolvido
no louco pesadelo da batalha, o bárbaro jamais pôde dizer exatamente como matou o adversário. Apenas
soube que o estígio lhe golpeara seguidamente o elmo com uma pedra, ofuscando-lhe a vista, enquanto
ele enfiava várias vezes a adaga no corpo do inimigo, sem qualquer efeito aparente sobre a terrível
vitalidade do príncipe. O mundo girava diante dos olhos de Conan quando, com um tremor convulsivo, o
corpo que se comprimia contra o seu enrijeceu de repente e caiu morto.
Com o sangue escorrendo pelo rosto sob o elmo amassado, Conan levantou-se e fitou a profusão da
morte que se estendia diante dele. De colina a colina, os mortos formavam um tapete vermelho que
sufocava o vale. Os corpos fechavam a entrada da passagem, cobriam as encostas. E , mais ao longe no
deserto, a matança continuava, pois os sobreviventes da horda haviam alcançado seus cavalos e tentavam
fugir, perseguidos pelos vitoriosos exaustos. E Conan observou, horrorizado, como haviam restado
poucos homens para persegui-los.
De repente, um grito de pavor encheu o ar. Do alto do vale, uma carruagem se aproximava em
velocidade, sem fazer conta das pilhas de corpos. Não era puxada por cavalos, mas por uma grande
criatura negra semelhante a um camelo. Natohk vinha de pé no carro, seu robe esvoaçava; e, segurando as
rédeas e chicoteando como um louco, havia um ser negro antropomórfico que poderia ter sido uma
espécie de macaco monstruoso.
A carruagem subiu a encosta cheia de corpos e foi direto para a tenda onde Yasmela se encontrava
sozinha, abandonada por seus guardas na ânsia da perseguição.
Conan, imobilizado, ouviu o grito desesperado da princesa quando Natohk a agarrou nos braços e a
colocou dentro do carro. Então, o animal negro deu meia-volta e tornou a descer a encosta para o vale, e
nenhum homem ousou atirar uma flecha ou lança, com medo de atingir Yasmela, que se contorcia nos
braços de Natohk.
Conan deu seu grito inumano, pegou no chão a espada e pulou diante da carruagem. Mas, assim que
ergueu a espada, as patas dianteiras da besta negra atingiram-no como um raio e o atiraram a vários
metros de distância. O grito apavorado de Yasmela chegou a seus ouvidos enquanto o carro se afastava
em velocidade.
Um urro sem o timbre da voz de um homem saiu dos lábios de Conan quando ele se levantou da terra
sangrenta, agarrou as rédeas de um cavalo sem montaria que passava correndo e pulou na sela sem fazer
o animal parar. Galopando alucinadamente, saiu em perseguição à carruagem de Natohk. Passou como um
furacão pelo acampamento dos shemitas e seguiu pelo deserto, deixando para trás grupos de seus
próprios guerreiros e de apressados homens do deserto.
A carruagem prosseguia como o vento e Conan galopava atrás. Agora, só havia o deserto aberto à
volta, banhado no fantástico esplendor do pôr do sol. Diante dele, erguiam-se as antigas ruínas, e, com
um grito agudo que congelou o sangue nas veias de Conan, o sobrenatural condutor do carro atirou
Natohk e a moça para fora. Eles rolaram na areia e, diante dos olhos atordoados do bárbaro, a carruagem
e o animal que o puxava transformaram-se horrivelmente. Grandes asas estenderamse de uma medonha
criatura negra que de forma alguma se assemelhava a um camelo; ela voou para o céu, levando atrás de si
uma espécie de chama capaz de cegar, na qual uma forma negra de contornos humanos ria em
fantasmagórico triunfo. Foi tudo tão rápido que mais pareceu um pesadelo.
Natohk levantou-se, deu uma rápida olhada para seu perseguidor, que se aproximava sem reduzir a
velocidade, com a espada espalhando gotas vermelhas pela areia; então, o feiticeiro agarrou a princesa e
correu com ela para dentro das ruínas.
Conan pulou do cavalo e seguiu atrás deles. Entrou em um salão iluminado com um brilho estranho,
embora, lá fora, já tivesse começado a anoitecer. Sobre um altar de jade negro, viu Yasmela nua, com o
corpo reluzindo como marfim sob a luz misteriosa. Suas vestes estavam espalhadas pelo chão, como se
tivessem sido arrancadas com uma pressa brutal. Natohk, inumanamente alto e magro, vestido em seda
verde, postou-se diante do cimério. Então, afastou o véu e Conan pôde contemplar o mesmo rosto que
vira representado na moeda zugita.
— Sim, cachorro! — a voz era como o sibilo de uma serpente gigante. — Eu sou Thugra Khotan! Jazi
muito tempo em meu túmulo, esperando pelo dia do despertar e da libertação. As artes que me salvaram
dos bárbaros muito tempo atrás também me aprisionaram, mas eu sabia que alguém chegaria em tempo —
e ele veio, para cumprir seu destino, e para morrer como nenhum homem morreu em 3 mil anos!
— Idiota, acha que me venceu porque conseguiu dispersar meu povo? Porque eu fui traído e
abandonado pelo demônio que escravizei? Sou Thugra Khotan, que irá governar o mundo apesar de seus
deuses insignificantes! O deserto está repleto de meu povo; os demônios da terra farão a minha vontade,
assim como os répteis da terra me obedecem. O desejo por uma mulher enfraqueceu minha feitiçaria.
Agora, a mulher é minha e, banqueteando-me em sua alma, eu me tornarei invencível! Para trás, idiota!
Você não venceu Thugra Khotan!
Ele atirou seu bastão aos pés de Conan, que recuou com um grito involuntário. Isso porque, quando o
bastão caiu, mudou terrivelmente de forma; seu contorno desfez-se e contorceu-se, e uma cobra sibilante
apareceu diante do cimério horrorizado. Conan exclamou furiosamente e golpeou o réptil com a espada,
cortando-o em dois. E , ali a seus pés, viu apenas os dois pedaços de um bastão quebrado.
Thugra Khotan riu à sua maneira tenebrosa e, virando-se, pegou alguma coisa que se arrastava pela
poeira do chão.
Em sua mão estendida, algo vivo se contorcia. Não eram truques de sombra desta vez. Com a mão
desprotegida, Thugra Khotan segurava um escorpião negro, com mais de 30 centímetros de comprimento,
a criatura mais letal do deserto, cujo ataque significava morte instantânea. O rosto ossudo de Thugra
Khotan abriu-se em um esgar de múmia.
Conan hesitou; então, abruptamente, atirou a espada.
Pego de surpresa, Thugra Khotan não teve tempo de evitar o golpe. A ponta da espada atingiu-o
abaixo do coração e atravessou-lhe o corpo, saindo pelas costas. Ele caiu, esmagando o monstro
venenoso em sua mão.
Conan caminhou até o altar e ergueu Yasmela com os braços sujos de sangue.
Ela atirou convulsivamente seus próprios alvos braços ao redor do pescoço arredondado de Conan,
chorando histericamente, e não o deixou desvencilhar-se.
— Em nome de Crom, moça! — resmungou ele. — Deixe-me ir! 50 mil homens pereceram hoje e há
muito trabalho a fazer...
— Não! — Yasmela interrompeu, agarrando-o com uma força convulsiva, tão bárbara naquele instante
quanto seu medo e sua paixão. — Não vou deixá-lo ir! Eu sou sua, por fogo, aço e sangue! E você é meu!
Lá fora, eu pertenço aos outros. Aqui, eu sou minha... e sua! Você não irá!
Ele hesitou, lutando contra a força de suas próprias paixões violentas. O brilho lúgubre e inumano
ainda enchia a câmara, iluminando de maneira fantasmagórica o rosto findo de Thugra Khotan, que
parecia rir sombria e terrivelmente para eles.
No deserto, nas colinas entre os oceanos de corpos, homens estavam morrendo, uivando com suas
feridas, sua sede e sua loucura, e os reinos permaneciam em perigo. Mas então tudo foi apagado por uma
onda carmesim que agitava loucamente a alma de Conan, enquanto ele apertava em seus braços de aço
aquele esguio corpo de porcelana, enroscado ao seu pelo poder de um fogo mais poderoso do que
qualquer magia.

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"WHO DARES WINS" - "QUEM OUSA VENCE" Não devo temer. O medo é o assassino da mente. O medo é a pequena morte que traz a obliteração total. Eu enfrentarei meu medo. Permitirei que ele passe sobre mim e através de mim. E, quando ele houver passado, voltarei ao meu olhar interior para ver seu caminho. Onde o medo se foi, não haverá nada. Somente eu permanecerei. — Frank Hebert, Duna.

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